Ciência
24/06/2022 às 02:00•3 min de leitura
O problema foi dinheiro, como sempre costuma acontecer quando escândalos dessa magnitude atingem corporações grandes como a Bayer AG, empresa química e farmacêutica alemã pioneira no ramo de saúde, com 150 anos de existência. Contudo, no caso da Bayer, cujo lema até hoje ressalta o respeito e paixão pela saúde, o quanto a ganância falou mais alto foi simplesmente perturbador, mostrando que a vida pode, sim, vir em segundo lugar quando enormes quantidades de dinheiro precisam ser trocadas de mão em mão todos os dias.
Em outubro de 1984, os Laboratórios Cutter, da Bayer, permitiram que fossem vendidos na América Latina e na Ásia, toneladas de medicamentos destinados aos hemofílicos contaminados com o vírus HIV. Milhares de pessoas morreram como resultado da priorização dos lucros sobre as pessoas, mas essa não foi a primeira vez.
Em 1955, em uma busca desenfreada para ganhar a corrida pela vacina contra poliomielite, a empresa produziu 120 mil doses do imunizante contendo o vírus vivo, não inativado, que deveria garantir a segurança das crianças que o tomasse. Isso gerou 40 mil casos de pólio, dos quais 200 deixaram graus variados de paralisia, e 10 levaram ao óbito.
A dianteira da Bayer em escândalos na área da saúde, dessa vez, porém, foi longe demais.
(Fonte: CBG Network/Reprodução)
Foi em meados de 1803 que o médico da Filadélfia (EUA), John Conrad Otto, reconheceu um distúrbio genético hemorrágico que chamou de hemofilia, cujo rastro da doença vinha de um ancestral feminino que vivia em Plymouth, New Hampshire (EUA), em 1720.
A doença afeta a coagulação do sangue devido à falta das proteínas (elementos responsáveis pelo crescimento e desenvolvimento de todos os tecidos do corpo). Em caso de hemofilia do tipo A, os portadores são deficientes em fator VIII; já na hemofilia do tipo B, é o fator IX que acaba sendo afetado.
Foi em 1965 que a Dra. Judith Graham Pool, da Universidade de Stanford, descobriu que o precipitado deixado pelo descongelamento do plasma sanguíneo era rico em fator VIII, bem em uma época em que a expectativa de vida de um hemofílico beirava os 20 anos. Demorou até 1984 para que surgisse o Fator VIII como medicamento, aprovado para uso profilático nos Estados Unidos pelo Food and Drug Administration (FDA).
(Fonte: The Seattle Times/Reprodução)
Ao mesmo tempo, a década de 1980 vivia o horror causado pela contaminação pelo vírus do HIV e o desenvolvimento de sua doença, a AIDS. Assim que o Centro de Controle de Doenças (CDC) identificou a doença, ela foi rapidamente associada aos homossexuais, viciados em heroína, haitianos e hemofílicos — ainda que não soubessem como realmente era transmitida, criando estigmas sociais que se estendem até hoje.
Foi só em 1985 que os cientistas desenvolveram um exame específico para detecção do HIV, mas a essa altura, a Bayer já vendia produtos contaminados no exterior. O mais assustador nisso é que, em 3 de dezembro de 1982, o CDC enviou uma carta à Divisão Biológica Cutter de Miles Laboratories, alegando uma série de relatos de AIDS em hemofílicos do tipo A, o que levantava a uma grave questão sobre possível transmissão de HIV através do sangue e seus derivados.
(Fonte: Factor 8/Reprodução)
Isso porque o Fator VIII precisava de um banco de doadores de sangue grande para sua produção. Em fevereiro de 1983, a Bayer disse que estava testando doadores para HIV, mas não havia um exame detector para o vírus ainda. Documentos internos que surgiram após o escândalo ganhar um processo, alegam que a Bayer fez seu medicamento a partir da compra de sangue de presidiários, usuários de drogas e homens gays de alto risco, provavelmente os que viviam em situação de prostituição.
Mas havia uma alternativa de a gigante farmacêutica continuar fazendo o Fator VIII ao aquecer o concentrado de plasma, método desenvolvido pelos seus laboratórios naquele ano. O processo torna o HIV inativo, reduzindo a taxa de infecção para zero, porém o tratamento térmico do fator VIII era seis vezes mais caro de produzir. Portanto, a Bayer optou por se manter com o método antigo, mesmo que custasse a vida de milhares de pessoas.
(Fonte: Science & Society/Reprodução)
Estima-se que 90% daqueles que receberam Fator VIII contaminado por HIV, foram infectados. Os produtos foram retirados do mercado norte-americano, mas não pararam de ser comercializados até 1 ano depois no exterior, quando os estoques produzidos se esgotaram. Tudo para que a Bayer não perdesse bilhões de dólares.
Até 1992, os medicamentos contaminados infectaram com HIV pelo menos 5 mil pessoas hemofílicas na Europa, das quais duas mil delas desenvolveram AIDS. Um total de 1.250 pessoas morreram da doença. Foi descoberto que, em meados da década de 1990, a maioria das 4 mil pessoas com AIDS no Japão eram hemofílicas, e o motivo foi rastreado até o escândalo da Bayer nos EUA. Pelo menos 700 casos de HIV foram ligados ao uso de hemoderivados contaminados na América Latina.
(Fonte: The Times/Reprodução)
Na década de 1990, quatro empresas foram processadas e tiveram que pagar US$ 640 milhões em danos para resolver um processo semelhante. E apesar de todos os relatórios e documentos vazados, além de uma busca enorme por evidências, durante o processo de 2003 lançado contra a Bayer, o presidente da megacorporação divulgou, em maio daquele ano, uma declaração alegando que a empresa "havia se comportado de forma responsável, ética e humana" durante toda a crise da década de 1980 envolvendo os riscos das transfusões de sangue.
Em um novo comunicado, a Bayer disse que a empresa não pode ser mais julgada por comportamentos adquiridos há 20 anos. No final das contas, o mais perturbador é que, a corporação não fez nada nem mesmo para se reparar, ainda que continuasse cobrindo com um longo tapete de dinheiro sua reputação.