Artes/cultura
09/02/2021 às 15:00•4 min de leitura
Durante 1.300 anos, existiram na China os intitulados Exames Imperiais, que tiveram origem na época da dinastia Sui e consistiam em provas altamente difíceis que selecionavam somente os homens a partir dos 15 anos para integrar cargos políticos. Naquela época, era o único meio possível de ascensão social, principalmente para os pobres, e era destinado exclusivamente a uma parcela culta da sociedade. Os milhares de concorrentes às 4 esferas dos exames – capital, distrital, provincial e de palácio – tinham que enfrentar uma taxa de apenas 1% de aprovação em cada uma delas.
E foi por isso que o pobre Hong Xiuquan começou a se aplicar aos estudos desde muito cedo. Ele chegou a passar no primeiro exame em primeiro lugar, após 6 anos memorizando os Quatro Livros, que são textos clássicos chineses do confucionismo selecionados durante a dinastia Song responsáveis por formar o conteúdo oficial dos Exames Imperiais.
Entre 1836 e 1843, Hong tentou passar, mas fracassou por quatro vezes seguidas. Em sua terceira vez, ele teve um colapso nervoso tão grave que o deixou doente por vários dias. Em meio às alucinações provocadas pela febre alta e infecção, ele teria sonhado que visitava o Céu, onde havia uma família celestial, com direito a pai, mãe, irmão mais velho, cunhada, esposa e filho.
Seu “pai celestial” teria lhe dito que lamentava que os homens adorassem “demônios” em vez de sua imagem, e presenteou Hong com um selo dourado e uma espada para que “matasse essas criaturas”. Em uma de suas visões, Hong alegou que seu “pai celestial” punia Confúcio por levar o povo para o mau caminho da humanidade.
Ele levou 7 anos até refazer os exames pela última vez, enquanto isso trabalhou como professor em várias escolas do condado de Hua, sua cidade natal. Recuperado de seu colapso, Hong descobriu em suas coisas um panfleto com passagens bíblicas e homilias intitulado “Boas Palavras para Exortar a Idade”, que foi dado a ele por um missionário estrangeiro chamado Edwin Stevens, que pregava em praça pública sobre o cristianismo quando ele viajou para Guanzhou em 1836 para tentar pela terceira vez passar no exame.
Hong começou a acreditar que suas visões e a redescoberta daqueles panfletos esquecidos eram uma mensagem: seu “pai celestial” era Deus e ele era o irmão mais novo de Jesus Cristo. Desiludido, Hong acreditou que estava destinado à ascensão ao Céu como resultado de uma missão divina na Terra para livrar os chineses dos símbolos confucionistas que os aprisionavam em miséria e blasfêmia.
Ter encontrado sua paz nos ensinamentos de Jesus aos poucos o fez corromper o próprio cristianismo, a ponto de manipular os dogmas de acordo com sua interpretação, elaborando cartilhas sobre fé, reescrevendo a própria Bíblia e se inserindo como o irmão mais novo encarnado do Cristo.
Hong se aproveitou de um momento em que a China estava enfraquecida após a derrota na Primeira Guerra do Ópio, com um governo descentralizado que não conseguia lidar com a iminência do imperialismo europeu, províncias em constante rebelião, aluguéis subindo, economia em queda, fazendeiros sobrecarregados e abandono de terras. Em meio a tudo isso, o cristianismo parecia a única esperança para os desesperados, porque afastava o pensamento das ideologias que só os massacrava.
Ele converteu seus parentes e recrutou centenas de reprovados nos exames para formar grupos que queimavam livros budistas, confucionistas e estátuas sagradas com o intuito de “purgar” as cidades.
Em 1847, Feng Yunshan, primo distante de Hong, ajudou-o a fundar a Sociedade de Adoração a Deus, que pregava o confucionismo, o taoísmo, o milenarismo indígena fundido ao cristianismo e tinha a ideia de um comunismo que prometia terra livre, partilha de propriedades para todos, liberdade de dogmas e costumes, e igualdade entre homens e mulheres. A maioria de seus seguidores era pobres fazendeiros, mineiros, camponeses e os povos Hakka.
Autodeclarado o Rei Celestial, Hong definiu que a fundação era uma nova dinastia chamada Taiping Tianguo (Reino da Paz Celestial), e que todos os seguidores eram soldados, portanto deveriam dominar várias províncias da China para derrubar a dinastia Qing e se firmarem no poder.
Em 1851, eles já eram 30 mil seguidores que ocupavam a cidade de Jintian (atual Guiping). Diante dessa crescente ameaça, tropas Qing foram enviadas para derrubá-los, porém foram derrotadas. Em 2 anos, Taiping formava um exército de mais de 3 milhões.
Em 19 de março de 1853, eles invadiram a cidade de Nanjing, e Hong a declarou a Capital Celestial de seu reino, dando início à Revolução Taiping. Antes de se instalarem, eles aniquilaram todos os manchus, uma vez que os consideravam “demônios” por terem estabelecido uma nova dinastia imperial desde o século XVII. Todos os homens foram decapitados, esquartejados ou afogados, enquanto as mulheres foram queimadas vivas. Cerca de 30 mil civis foram mortos durante a invasão.
Com a iminência da queda dos Qing, a China travou anos de batalhas fracassadas contra a potência rebelde Taiping, já que sua força militar estava enfraquecida pelos vários focos de conflito propagados por Hong para dominar as outras cidades e pela Segunda Guerra do Ópio. Estima-se que 30 milhões de pessoas morreram por causa da rebelião, e o período entre 1850 e 1873 foi marcado pela baixa populacional de 60 milhões de civis na China, resultado de rebeliões, guerras e fome.
Quando Hong estabeleceu uma administração para sua dinastia e se afastou das questões políticas para se dedicar ao seu harém e à meditação, seus comandantes e líderes foram os responsáveis por abalar a estrutura de governo com suas divergências ideológicas sobre o evangelho de Hong, ambições, conflitos internos mortais e tentativas frustradas de dominação, como aconteceu com Pequim e Xangai.
Em 1860, os Qing uniram forças com os europeus após o Tratado de Tianjin para formar o Exército Sempre Vitorioso, uma frente militar estratégica liderada por Charles George Gordon, para finalmente acabar com a insurreição Taiping. Por 2 anos, Nanjing resistiu às investidas e ao cerco, porém, em 1864, com todas as estruturas de poder da dinastia debilitadas e Nanjing sem suprimentos, a rendição era a única saída.
Prevendo o fim, Hong Xiuquan se envenenou com ervas e morreu em 1 de junho de 1864. Um mês depois, a cidade assistiu a um banho de sangue da morte de mais de 100 mil civis pelas tropas Qing. Cerca de 200 mil seguidores preferiram a autoimolação pública a se entregar à dominação inimiga. Os rebeldes que resistiram foram caçados e executados.
A insurreição de 15 anos acabara, porém as raízes deixadas por Hong provocaram não só o enfraquecimento do controle Qing, que culminou em uma derrocada após 267 anos de poder, mas também a vontade dos povos de provar mais da igualdade pregada por Hong.
Em 1940, o comunismo prosperou na nação por causa de um jovem que se apropriou de uma religião e a manipulou para ganho próprio, erguendo um império a partir de seus princípios e baseado em uma vida de fracassos dentro de um sistema meritocrático.