Estilo de vida
01/04/2018 às 03:00•6 min de leitura
Costuma-se dizer que religião e ciência não devem se misturar, posto que a primeira repousaria sobre a fé e a segunda, sobre a razão. Entretanto, ao vislumbrar um fogo que se acende magicamente, toma todo um local sagrado para, por fim, repousar sobre uma vela — sendo incapaz de queimar a pele ou as vestimentas do seu portador, conforme relatos —, é realmente difícil não colocar os dois universos conflitantes frente a frente.
O referido acontecimento é uma das liturgias mais antigas da tradição ortodoxa, sendo considerado o milagre mais constante no mundo (desde 1106, embora existam referências mais antigas). Em evento televisionado para diversos países — como Geórgia, Grécia, Ucrânia, Romênia, Bielorrússia, Bulgária, Chipre, Líbano, Egito etc. —, o patriarca grego ortodoxo inicia uma procissão solene ao redor do Santo Sepulcro, local onde, segundo a tradição cristã, Jesus Cristo foi sepultado.
Juntamente com outros membros do clero, o homem santo da Igreja Católica Ortodoxa marcha por três vezes ao redor do local entoando hinos. Em seguida, ele é despido de suas roupas religiosas e examinado por autoridades israelenses, entrando no sepulcro. É ali que ele recitará orações tremendamente antigas, até que o local seja preenchido pelo que normalmente é descrito como uma “misteriosa luz azul surgida do nada”.
Na parte externa do Santo Sepulcro, fiéis celebram e se acotovelam com velas nas mãos, esperando pelo momento em que o patriarca deixará a tumba, trazendo consigo uma vela acesa pelo próprio fogo da “sarça ardente do Monte Sinai” — o qual, depois de serpentear pelas paredes do Sepulcro, acaba por estacionar sobre 33 velas amarradas juntas pelo clérigo —, simbolizando a idade de Cristo quando foi crucificado.
Eis o evento, conforme descrito por Diodoro de Jerusalém, patriarca da Igreja Ortodoxa de Jerusalém entre 1981 e 2000:
“Eu passei pela escuridão até a câmara interna e caí de joelhos. Lá, eu recitei algumas orações que nos foram passadas através dos séculos e, tendo-as dito, esperei. Algumas vezes, por alguns minutos, mas normalmente o milagre acontece imediatamente após eu ter recitado as orações. Do centro da pedra em que Jesus esteve deitado, uma luz indescritível aparece. Ela geralmente tem um tom azulado, mas a cor pode mudar e tomar diversas outros padrões.
Ela não pode ser descrita em termos humanos. A luz sai da pedra como uma bruma que sobe de um lago, quase como se a pedra estivesse coberta por uma nuvem úmida, mas de luz. Essa luz se comporta de maneira diferente a cada ano. Algumas vezes, ela cobre apenas a pedra, enquanto em outras ela ilumina o sepulcro todo, de forma que as pessoas que estão do lado de fora do túmulo e olham para dentro deles o virão cheio de luz.”
No que se refere ao fato de ser “fria”, ele relata:
“A luz não queima. Eu jamais queimei a minha barba nos dezesseis anos que eu fui patriarca em Jerusalém e recebi o Fogo Sagrado. A luz é de uma consistência diferente do fogo normal que queima numa lâmpada de óleo.
A certo ponto, a luz sobe e forma uma coluna na qual o fogo é de uma natureza diferente, de tal forma que eu sou capaz de acender as minhas velas nele. Quando eu termino de receber a chama desta forma em minhas velas, eu saio e entrego o fogo primeiro para o patriarca armênio e depois para o copta. Depois, para todos os presentes na igreja.”
Uma vez que o patriarca tenha deixado o sepulcro com a chama sagrada, esta será então distribuída para todos os locais. Além disso, a chama é também “depositada” em uma lamparina, que será conduzida por voo especialmente fretado até a Catedral de Cristo Salvador de Moscou, na Rússia. Dali a chama é ainda remetida a diversas dioceses ortodoxas espalhadas pelo mundo.
A fim de garantir a legitimidade da experiência sobrenatural do fogo sagrado do Santo Sepulcro, há diversos protocolos que precisam ser cumpridos previamente. Durante a Sexta-Feira Santa, após o Ofício das Exéquias de Cristo, autoridades israelenses e representantes de outras igrejas se dirigem ao sepulcro, a fim de conduzir uma investigação minuciosa do local.
Após apagar todas as lamparinas da igreja e garantir que não haja fontes de foto possíveis no local, os membros da comitiva terminam por lacrar o Santo Sepulcro, imprimindo cada um o seu timbre sobre a cera. Esta será rompida apenas no momento imediatamente anterior à entrada do patriarca ortodoxo no recinto.
Embora não propriamente sirva como garantia, há ainda uma peculiaridade comumente levantada por defensores do suposto milagre. Ao que parece, o Fogo Sagrado é absolutamente preciso no que se refere ao dia em que deve “baixar” até o Santo Sepulcro.
De fato, conta-se que a mudança no calendário introduzida pelo patriarca grego de Jerusalém na virada de 1969 para 1970 — por conta de uma revisão pedida pelo Concílio Mundial das Igrejas —, por alterar cronologia, terminou por comprometer o aparecimento do Fogo Sagrado. Isso fez com que a medida fosse imediatamente revogada e, no ano subsequente, o fogo, então, tornaria a reaparecer no Santo Sepulcro.
É claro que a natureza milagrosa/mágica do fogo do Santo Sepulcro não poderia deixar de suscitar desconfianças em muita gente, sendo a principal suspeita a de um sortilégio qualquer lançado para ludibriar os fiéis, que seriam conduzidos por interesses seculares e por um simples passe de mágica. E essa “pulga atrás da orelha” é até muito mais antiga do que se poderia imaginar.
De fato, o cronista inglês Gautier Vinisauf, o Sultão Saladino, liderando os sarracenos na tomada de Jerusalém em 1192, quis então presenciar o famoso milagre. “Em sua chegada, o fogo sagrado desceu repentinamente, e os assistentes ficaram profundamente emocionados; os sarracenos disseram que o fogo que eles viram descer fora produzido por meios fraudulentos”, relatou Vinisauf.
Ele continua: “Saladino, querendo expor o impostor, apagou a lamparina que o fogo celeste acendera, mas, uma vez feito isso, a lamparina imediatamente reacendeu. Ele a apagou uma segunda vez, e uma terceira, mas ela reacendeu sozinha. Então, o Sultão, confundido, chorou, dizendo, em tom profético: ‘Sim, morrerei ou perderei Jerusalém’”.
A possível “secularidade” do evento também foi ressaltada pelo historiador inglês Edward Gibbon: “Essa fraude piedosa, divisada pela primeira vez durante o século nono, foi devotamente acarinhada pelos cruzados latinos e é anualmente repetida pelo clericato grego, armênio e pelas seitas coptas [cristãos egípcios], os quais se impõem aos espectadores crédulos para seus próprios benefícios e de seus tiranos”.
Mas o sultão Saladino não foi o único e, possivelmente, talvez não tenha sido também o mais cuidadoso dos questionadores da legitimidade do fenômeno pascoal ortodoxo. Uma aposta cética um tanto mais científica foi levada à TV em 2005, em transmissão ao vivo, pelo historiador Michael Kalopoulos.
Supostamente recriando o evento, Kaloupoulos fez com que três velas acendessem espontaneamente após aproximadamente 20 minutos. Ocorre que o material havia sido mergulhado em fósforo branco, de forma que a reação era natural e esperada, por conta das propriedades e do contato com o ar.
“Se o fósforo for dissolvido num solvente orgânico apropriado, a autoignição é atrasada até o ponto em que o solvente tenha se evaporado completamente”, relatou o historiador. “Repetidos experimentos mostraram que a ignição pode ser atrasada por meia hora ou mais, dependendo da densidade da solução e do solvente empregado.”
Kalopoulos afirma ainda que semelhante artifício era utilizado pelos magos caldeus já no século V a.C. e também pelos gregos antigos. O processo, de acordo com ele, era exatamente o mesmo de que se vale até hoje o patriarca da Igreja Ortodoxa de Jerusalém.
Mas há ainda uma peculiaridade do Fogo Sagrado que também é comumente sujeitada a hipóteses científicas. Conforme mencionado anteriormente, consta que a chama espontânea do Santo Sepulcro é incapaz de queimar a pele ou as roupas, pelo menos durante algum tempo.
Nesse sentido, uma medição feita sutilmente pelo físico russo Andrey Volkov em uma das liturgias oferece uma explicação possível. “Um aparelho fixado para registro de espectro eletromagnético detectou um estranho impulso com longo comprimento de onda dentro do templo”, explicou ele ao site Pravda.
“Esse impulso não foi mais detectado desde então”, ele afirma. “Havia algum tipo de descarga elétrica. Não se sabe se houve a descarga de um raio ou se havia problemas com algum equipamento de TV no local.”
Entretanto, embora não possam ser vistos hoje (sobretudo por conta dos flashes utilizados por dezenas de fotógrafos), o evento foi originalmente associado a energias que desciam pelas paredes. Segundo Volkov, essas energias não têm nada a ver com a chama propriamente dita. Antes, seria uma manifestação do chamado “plasma de baixa temperatura”.
Em outras palavras, o dito fogo inicial “que não queima” não passaria de partículas ionizadas pela presença de um campo elétrico — semelhante ao que acontece durante o fenômeno conhecido como fogo-de-santelmo.
Em se tratando de uma possível fraude, independentemente dos métodos empregados, há quem garanta que o engodo é bem conhecido pela Igreja Ortodoxa desde sempre. O cético russo Igor Dobrokhotov compartilha dessa opinião, alegando que trechos do diário do bispo Porphyrius (1804-1885) deixavam claro que o clericato de Jerusalém não ignorava a natureza fraudulenta do Fogo Sagrado.
Mesmo sendo um evento solene, a aparição do Fogo Sagrado, eventualmente, traz também consigo o aparecimento do também muito conhecido “espírito de porco”. De fato, há vários relatos de atos violentos que tomaram a Basílica do Santo Sepulcro em mais de uma ocasião.
Em 1856, o cônsul britânico James Finn afirmou ter presenciado um combate generalizado entre peregrinos gregos e armênios — ambos os lados armados com pedras e paus previamente escondidos no local. Como resultado, o paxá (governante durante o Império Otomano) precisou ser escoltado por soldados armados. Retirada figura ilustre, os soldados teriam, então, voltado para combater ambos os lados com baionetas.
Há também um relato do viajante inglês Robert Curzon. De acordo com ele, durante a liturgia conduzida no dia 3 de maio de 1834, um pânico generalizado tomou conta da igreja lotada, resultando na morte de mais de 400 pessoas. Na ocasião, o paxá Ibrahim teria escapado unicamente porque seus guardas pessoais abriram caminho a espadadas através da multidão.
*Publicado em 30/4/2014