Ciência
10/06/2020 às 14:00•3 min de leitura
Ao longo de mais de 300 anos, a névoa que encobria Londres, como um presságio de morte, serviu para os escritores como um dispositivo de cenário para ressaltar uma atmosfera de mistério e suspense. Foram os romancistas do mal du siècle que deram início ao movimento, romantizando o nevoeiro, mas foi Charles Dickens o responsável por recriar essa imagem. Afinal, era em uma Londres vitoriana do século XIX que detetives tentavam descobrir as mortes cometidas por Jack, o Estripador e outros assassinos que se aproveitaram da neblina para cometer os seus crimes hediondos.
Depois de Dickens ter personificado a névoa em seu livro Bleak House (1853), como metáfora para a complexidade da lei, ao longo dos anos outros escritores passaram a se aproveitar da bruma, só que como um objeto de crítica social. Essa se tornou o próprio mal, e não só os criminosos que se refugiavam em meio a ela.
A névoa estava literalmente matando as pessoas.
(Fonte: Climate Home News/Reprodução)
Essa neblina tão retratada na ficção do século passado nunca foi natural, mas sim fruto da pressão e densidade climática, pois ela era tóxica. Desde meados do século XVII, os londrinos reclamam da impureza do ar na cidade, tudo devido ao encolhimento das áreas florestais que causou uma queda no uso de lenha e aumento exponencial do carvão. O rei Eduardo I chegou a proibir a venda do mineral, pois este produzia nuvens de fumaça colossais, porém poucos cumpriram a ordem, mesmo sob pena de tortura e morte, pois a madeira já estava muito cara naquela época.
Com a umidade ficando presa nas colinas ao redor, a localização da bacia de Londres no estuário do rio Tâmisa sempre foi propensa à produção de névoa natural, porém o vapor da água grudava nas partículas liberadas pelas fábricas de carvão, criando uma neblina espessa e persistente que durava dias até se dispersar. Foi a partir disso que um londrino cunhou a palavra smog para se referir ao fenômeno, um neologismo criado pela fusão das palavras "fumaça" e "neblina".
Em 1873, um nevoeiro tóxico se instalou na cidade e causou 268 mortes por bronquite. Seis anos depois, no apogeu da Revolução Industrial e com o crescimento da metrópole, uma crise de poluição gerada pelo aumento considerável de fornos domésticos e industriais foi causada. Em meados de 1890, houve uma transição dos motores a vapor para os elétricos, o que ocasionou uma ligeira diminuição da frequência de neblina assim que as fábricas começaram a migrar para fora da cidade.
No entanto, o próprio meio ambiente já tinha atingido o seu limite e não conseguiu sustentar a situação.
(Fonte: Quartz/Reprodução)
No dia 5 de dezembro de 1952, o céu amanheceu claro e límpido. Com uma frente fria invernal que predominava há semanas na capital, encher de carvão as lareiras de casas, comércios e empresas se tornou um hábito comum para aguentar o vento fustigante.
Ao longo do dia, porém, uma neblina surgiu detrás do Big Ben e foi aos poucos se instalando por toda a parte. Ninguém se surpreendeu, afinal já era algo muito comum no cotidiano londrino. No entanto, com as toneladas de fuligem lançadas no ar por toda a cidade, a névoa ganhou um doentio tom marrom-amarelado. O ar ficou imundo em poucas horas e se tornou impossível ignorar o que estava acontecendo.
Tudo se deu por conta de um anticiclone que se estabeleceu sobre Londres, criando um sistema climático de alta pressão que causou uma inversão na qual o ar frio ficou preso abaixo do ar quente, no nível do solo. Portanto, a temperatura impediu que a fumaça sulfurosa do carvão subisse e, com uma brisa inexistente, não havia vento para dispersar a nuvem carregada de fuligem que fedia a enxofre.
Por 5 dias, a névoa permaneceu tão densa que os pedestres não conseguiam enxergar um palmo além do nariz. Todos os meios de transporte foram interrompidos, à exceção do metrô. As pessoas abandonaram os seus carros nas ruas e estradas. Comércios fecharam as portas. Ambulâncias não circulavam, e os doentes tiveram que fazer o próprio caminho até os hospitais. Milhares de animais, principalmente os rebanhos de gado em Smithfield, morreram sufocados.
(Fonte: Daily Mirror/Reprodução)
Uma onda roubos cresceu vertiginosamente, pois os criminosos podiam desaparecer na neblina mortal depois de invadirem lojas e bancos. Os sádicos também se aproveitaram desse colapso para cometer os seus atos doentios. Por incrível que pareça, o assassino em série John Reginald Christie imperou mais nas manchetes dos jornais da época do que qualquer traço do grande nevoeiro. O homem assassinou por asfixia no mínimo 6 mulheres e escondeu os seus cadáveres em baixo do piso de madeira de seu apartamento em Notting Hill.
Assim que a neblina começou a se levantar, em 9 de dezembro de 1952, o secretário-geral divulgou que 4 mil pessoas tinham morrido de asfixia. Mais tarde, o número chegou na casa de 12 mil mortes por bronquite aguda. Contudo, os efeitos nocivos da poluição atmosférica foram mais duradouros e causou doenças pulmonares crônicas em cerca de 100 mil habitantes. Esse foi o pior nevoeiro da história do país.
O governo britânico se mostrou lento para fazer algo a respeito, antes que episódios como aquele tornassem a se repetir. Então em 1956, a Lei do Ar Limpo foi introduzida como uma resposta direta aos nevoeiros letais. O ato estabeleceu áreas livres para fumantes nas cidades e restringiu a queima de carvão doméstico em fornos e lareiras, oferecendo e incentivando as famílias a migrar para o gás e outros meios menos poluentes.
A mudança foi gradual e tão lenta quanto o governo para estabelecer o ato. Durante esse período, nevoeiros mortais surgiram de tempos em tempos, sendo que o de 1962 matou cerca de 750 pessoas apenas em um dia. Entretanto, nenhum deles foi em uma escala tão fatal quanto a causada pelo o que ficou conhecido como "Grande Nevoeiro de 1952". Ironicamente, nesse sentido, todos foram igualmente negligenciados pela mídia e pelas próprias pessoas, que se comportavam como se não fosse algo tão importante assim.