Mega Mulheres: Maria Clara Araújo

06/03/2017 às 05:274 min de leitura

Ela começou me chamando de “meu anjo”, com aquele sotaque bonito do povo do Recife. Lembro-me de ter lido um de seus textos há mais ou menos uns dois anos, e aí, como geralmente faço com quem me encanta pela escrita, comecei a seguir suas publicações no Facebook.

Cada pequena ou grande postagem dela me ensinou alguma coisa e me fez correr atrás de mais informações. Foi também com ela que entendi que sou privilegiada socialmente por ser quem eu sou, e que ser quem eu sou não foi exatamente uma questão de escolha da minha parte.

Branca, heterossexual e de classe média, nunca vou saber o que viveu uma pessoa como Maria Clara Araújo dos Passos, negra, transexual e da periferia – isso não quer dizer, no entanto, que eu não possa reconhecer meus privilégios e dar voz a esse ser humano incrível que precisa ser conhecido e que deve ocupar espaços públicos e se tornar figura de representatividade.

Intolerância histórica

undefinedMaria Clara Araújo

Como bem me lembrou Maria Clara, o Brasil é o país onde mais há assassinatos de pessoas trans em todo o mundo. Por intolerância, transfobia, preconceito, covardia e falta de informação, mulheres trans como Dandara perdem a vida de maneira fria, cruel e desumana.

Historicamente, pessoas transexuais não são socialmente aceitas, não conseguem empregos normais e, pela fetichização de seus corpos, acabam encontrando na prostituição uma forma de sobrevivência, com o agravante de que o mesmo homem que paga para fazer sexo com uma travesti é o que participa da morte dela, seja de maneira direta como indireta: “No Brasil, nós temos a cultura não apenas do consumo das travestis, mas também do seu extermínio”, resumiu.

O extermínio é também dentro de casa, já que travestis são geralmente vistas de forma pejorativa e, uma vez que falam abertamente sobre sua transexualidade com seus pais e familiares, geralmente são renegadas pela própria família.

Representatividade

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Partindo daí, Maria Clara explica que pessoas trans não saem de casa, como se essa fosse uma escolha delas – na verdade, elas são expulsas dos lares onde nasceram e foram criadas. Nesse sentido, ela enxerga seu próprio privilégio, que é o de viver em uma família capaz de se abrir ao diálogo e, com o passar do tempo, entender seu lado e aceitá-la como mulher trans.

Filha de pais católicos, Maria Clara me contou que precisou conversar muito com eles, e que foi depois dos 16 anos, ao ver uma entrevista da modelo trans Lea T ao Fantástico, que ela decidiu falar com seus pais sobre sua própria identidade de gênero. Para ela, aquela apresentação da modelo na televisão brasileira foi a primeira vez que uma pessoa trans era exibida de maneira não depreciativa – e aí a gente volta facilmente à questão da representatividade: importa e muito.

Foi depois de ver a entrevista com Lea T que Maria Clara foi buscar informações sobre transexualidade e finalmente se entendeu como também uma pessoa transexual. Ao abordar a questão com a família e ao dialogar com seus pais a respeito do tema, esclarecendo quaisquer dúvidas e buscando compreensão, Maria Clara conseguiu, finalmente, construir um laço de compreensão com a família e se colocar como mulher socialmente, tendo sua identidade merecidamente respeitada.

Origens

undefinedAo lado da mãe, comemorando aprovação no vestibular. <3

A situação foi difícil para a família, é claro, mas aos poucos eles foram compreendendo a questão e dando apoio à Maria Clara: “A família tem um papel muito importante nos desdobramentos do que acontece quando um LGBT se assume”, afirmou.

Maria conta também que, no bairro onde cresceu, é normal que as pessoas, todas elas, se vejam como não pertencentes ao grupo que, um dia, ocupará uma sala de aula universitária. Por outro lado, foi em sua comunidade que ela participou de alguns projetos sociais e passou a ter vontade de entrar para a vida acadêmica.

A vontade se uniu à militância, e Maria Clara finalmente ocupou o lugar que tanto queria: hoje, aos 21 anos, é estudante de Pedagogia na Universidade Federal de Pernambuco, e sua fala, com citações como as do brasileiro Paulo Freire, não deixam dúvidas: Maria Clara já tem a pedagogia no discurso e na prática.

Garota-propaganda

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Além de ser uma das grandes vozes da militância LGBT atual, Maria Clara foi a primeira mulher transexual a ser garota-propaganda no Brasil, em 2015, quando estampou as campanhas da Lola Cosmetics, marca que se preocupa em criar produtos para todos os públicos: “Tê-la como a garota-propaganda da nossa marca dá chance para que outras meninas trans percebam que têm o direito de ser o que bem entenderem”, garantiu a assessoria de imprensa da marca em uma publicação na Carta Capital.

Para Maria Clara, essa oportunidade abriu portas para que as pessoas em geral comecem a reconhecer transexuais como seres humanos: “Eu acho que cada conquista de uma travesti de um modo geral faz parte de todo um processo de humanização da nossa identidade, visto todo o processo de desumanização ao qual fomos submetidas durante décadas no Brasil”, comenta ao lembrar que transexuais são vítimas recorrentes de violência, tortura e que, no passado, eram consideradas pessoas doentes pela Medicina.

Fazendo a diferença

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Por isso, ela acredita que ocupar espaços como os que ocupa — de garota-propaganda, de palestrante, de influenciadora digital e de universitária — é importante, uma vez que é isso o que ajuda a humanizar essas pessoas e mostrar para mais homens e mulheres transexuais que, ainda que haja tanta intolerância, estamos em um tempo em que é possível vermos pessoas trans criando a própria narrativa e construindo histórias que vão além da marginalização e da fetichização.

“Eu acredito que nos últimos três, quatro anos nós estamos tendo um acúmulo de vitórias e de contranarrativas em relação ao que nos foi dito. De qualquer forma, eu acho que é muito importante que nós também olhemos para o passado, entende? De reconhecer a quantidade de pessoas trans e de travestis que precisaram morrer para, de certa forma, eu, por exemplo, estar na universidade. Eu hoje estar na universidade é resultado de todo esse processo que veio muito antes de mim, entende?”

Não só eu entendo como decidi, ao lado de toda a equipe do Mega, começar a nossa pequena série de “Mega Mulheres” justamente com ela. A ideia é falar de algumas mulheres contemporâneas que fazem a diferença — e se tem alguma coisa que Maria Clara tem feito, é isso: diferença. E História também.

***

Aproveitando a ocasião, que tal conferir a playlist especial que o Mega fez para este Dia Internacional da Mulher?

Fonte

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