Artes/cultura
08/03/2017 às 04:06•4 min de leitura
Às vezes, chega um momento na vida de quem escreve e vive disso no qual o texto a ser escrito tem um peso diferente – os motivos variam desde onde será veiculado até questões como pagamento, dificuldade em abordar o assunto e, claro, quando a tarefa é escrever sobre alguém de quem você é fã.
O fã, coitado, tem esse comportamento meio besta, meio inconveniente. É quase como o adolescente apaixonado que não sabe como começar a conversar com a pessoa amada – acaba falando besteira, ficando vermelho e passando vergonha. E, de repente, como é que eu, adolescente de quase 30 anos, falaria sobre uma das mulheres mais fantásticas deste país? Com amor, com açúcar, com afeto, com vergonha e correndo o risco de falar besteira. É o que tem para hoje. Que eu escreva com a voz da diva como trilha sonora, ao menos, porque música, todo mundo sabe, sempre inspira.
“Me deixem cantar até o fim”, diz a maravilhosa Mulher do Fim do Mundo aqui nos meus fones de ouvido. Essa música, cujo clipe foi lançado há poucos dias, tem o poder de me causar arrepios e de implantar borboletas em meu estômago. Engraçado, né, como música mexe com a gente quase como mexe a paixão.
Quando entrei em contato com a equipe de Elza Soares, acreditei que não teria retorno. De repente, minha crença foi deliciosamente amassada por um email cheio de educação e graça, e o que se segue é, além do que pesquisei e vasculhei, fruto também do que a própria Elza me disse, em uma das maiores honras profissionais que já tive.
Comecei a pensar nesta pauta com o preconceito de que talvez nossos leitores não conhecessem a musa em questão, e, assim que postei uma música dela no Facebook, uma ex-aluna minha, que hoje tem seus 18 anos, imagino, comentou “muito amor por este ser magnífico”, com direito a coraçãozinho e tudo.
Elza, muito mais esperta do que eu, sabe que sua arte não tem faixa etária, e a consciência do poder de seu trabalho talvez seja responsável por fazer com que essa brasileira maravilhosa tivesse seu disco classificado como um dos dez melhores do ano pelo The New York Times. Do Grammy Latino ela também foi vencedora, além de ter recebido mais prêmios musicais e técnicos nos dois últimos anos.
Elza, que subiu ao palco pela primeira vez em 1953 no programa de Ary Barroso pela Rádio Tupi e disse ter vindo do “Planeta Fome”, conquistou o mundo todo nas décadas seguintes, do alto de seus saltos imensos que a colocavam em seu devido lugar: nos palcos, em destaque, cantando e fazendo História.
De volta à cena musical em 2015, Elza nos presenteou com seu álbum de inéditas “A Mulher do Fim do Mundo”, cujo reconhecimento foi instantâneo, chegando a ser classificado como “o mais importante da década” pela revista Caros Amigos.
A turnê do disco foi reconhecida como “Melhor Show Nacional” pela Folha de São Paulo e também pelo Estado de São Paulo. A Associação Paulista de Críticos de Artes, APCA, classificou o disco como melhor álbum do ano, e a faixa “Maria da Vila Matilde” foi eleita a melhor de 2015 pela revista Rolling Stone Brasil – a mesma música rendeu à cantora o prêmio de “Canção do Ano” pelo Prêmio Multishow 2016.
Quando falei a ela sobre seu disco ser um alerta às mulheres que vivem algum tipo de situação de violência, mas ainda não conseguiram se posicionar a respeito, Elza me disse: “Lógico! Como sempre digo: mulher tem que gritar na hora certa e gemer só de prazer. Essa é a minha função como artista, mulher e negra: alertar todas as mulheres a não se calarem. Violência não é só física; é verbal, é psicológica também. Alô, mulheres, disquem 180!”.
“Por que você acha que ainda é tão difícil ligar para o 180?”, perguntei. “Porque a mulher denuncia o cara, depois volta para casa, e as ameaças se intensificam, na maioria das vezes. Sei que é difícil, mas não podemos calar, não podemos ser submissas, temos que nos unir e enfrentar. Para quem ainda não denunciou, digo para acordar; ninguém é obrigada a nada, mas um pouco de amor-próprio faz bem. Denuncie já!”, aconselhou a diva.
Internacionalmente, Elza é a queridinha dos gringos, e sua voz maravilhosa agradou críticos de veículos como The Guardian, Financial Times, The Sunday Times e Mojo Magazine, só para citar alguns. A turnê europeia, que levou a voz e a presença de Elza a Berlim, Utrecht, Londres, Aveiro, Porto e Lisboa, foi um sucesso, sempre com todos os ingressos vendidos.
Deve ser mérito do talento mesmo, aquele que parece ser predestinado. Quando perguntei à Elza se seria outra coisa além de cantora, ela foi certeira: “Não sei... A única coisa que sei fazer na vida é cantar. Não sei fazer mais nada na vida... A música foi e é a minha salvação”.
Como cantora consciente que é, Elza falou também sobre a onda de comentários conservadores e de ódio, facilmente encontrados nas redes sociais: “Estamos vivendo um tempo de muita tristeza e muito ódio. O ser humano está precisando de mais amor e fé no coração”.
“Uma onda grande de conservadorismo no mundo, não só no Brasil. Tenho acompanhado os ataques racistas que nós, negros, temos recebido. O movimento negro tem reagido, e eu tenho engrossado o coro. Talvez falte apoio maior das entidades governamentais, dando mais voz ao movimento e punições mais concretas para quem pratica crimes como esse. Ainda quero cantar ‘A CARNE MAIS BARATA DO MERCADO FOI A CARNE NEGRA!’”, comentou ela, fazendo menção à música “A Carne”.
Ainda que o apaixonado não consiga falar de seu objeto de afeto sem ser sentimental, creio que o sucesso de Elza em culturas e países diferentes tenha muito a ver justamente com a carga emocional com a qual a cantora aborda os temas que transforma em canções. Por causa disso, meu trabalho fica até mais fácil – falo de emoção e emocionada porque me parece impossível ser diferente, e não apenas porque discorro sobre uma das mulheres que mais admiro.
Suas letras, que nada mais são do que poesias cantadas e gritadas quando os versos se transformam em manifestos, nos fazem pensar a respeito de questões sociais, da violência, do racismo, da pobreza, da violência contra a mulher.
Enxergar e compreender o lado individual de cada ser social parece ser mesmo o forte da artista que, devido a problemas na coluna, hoje faz shows sentada. Não faz mal: lugar de rainha também é no trono.