Entenda os polêmicos procedimentos realizados em pessoas intersexuais

10/08/2015 às 05:566 min de leitura

Você provavelmente já ouviu falar alguma coisa a respeito de pessoas que nascem com os órgãos reprodutores dos dois gêneros. Antigamente, eram chamadas de “hermafroditas”, mas o termo correto é “intersexual”. Pesquisas recentes apontam que uma em cada 100 crianças nos EUA nasce com essa característica.

E aí começa a polêmica, afinal, em 2012 foram realizadas 2.991 cirurgias reparadoras em pessoas com menos de 18 anos; 1.759 em crianças com menos de cinco anos de idade. A discussão, no caso, envolve também questões de identidade de gênero – como uma equipe médica decide qual estrutura anatômica deve ser retirada?

Em crianças com menos de cinco anos, essa questão da identidade de gênero ainda não é definida, obviamente. E se o procedimento cirúrgico envolvesse a retirada do órgão sexual masculino, por exemplo, e, no futuro, essa criança se identifique justamente com o gênero masculino? Querendo ou não, há 50% de chances de que isso aconteça.

Não é apenas uma hipótese

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Foi isso o que aconteceu com um garoto que conhecemos apenas pelas iniciais do seu nome: M.C. Ele foi adotado quando tinha 1 ano e meio de idade. Dois meses antes da adoção, no entanto, o garoto, que tinha nascido com pênis, testículo, ovário e canal vaginal, havia sido submetido a uma cirurgia que removeu todos os traços da sua anatomia masculina, ainda que exames de sangue indicassem que M.C. tinha os mesmos níveis de testosterona de qualquer menino de sua idade.

Hoje, aos dez anos, M.C. não tem pênis nem testículos, embora se identifique com o gênero masculino – e por isso será tratado como “ele” nesse texto. Atualmente, os pais do garoto movem uma ação judicial contra a equipe médica que, segundo eles, teriam escolhido o gênero da criança sem o direito de fazer isso.

Bebês intersexuais devem passar por esse tipo de cirurgia?

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Esses procedimentos de “correção” são realizados há décadas, com a intenção de que os bebês que nascem intersexuais possam ter uma vida normal. A questão é que identidade de gênero é um assunto que vem sendo cada vez mais debatido, felizmente.

Pessoas transexuais às vezes passam por cirurgias e tratamentos hormonais para conseguirem fazer parte do gênero com o qual se identificam, e não há nada de errado com isso. Por serem uma minoria, e por empatia ser um exercício ainda pouco praticado, é difícil que pessoas cisgênero (aquelas que se identificam com o gênero com o qual nasceram) entendam ou tentem entender como deve ser não ter essa identificação.

Ainda que muitos também não entendam o que é essa questão de identidade de gênero – dica: se é difícil entender, respeitar é o mínimo –, o assunto está começando a ser amplamente debatido, ainda mais com o apoio de transgêneros famosos como Caitlyn Jenner e Laverne Cox.

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No Brasil, podemos citar o exemplo de Maria Clara Araújo, que vem ganhando cada vez mais espaço nas redes sociais, principalmente depois de ter sido aprovada no curso de Pedagogia da Universidade Federal de Pernambuco. Nosso megaparabéns para ela!

No caso de pessoas intersexuais, o problema está na questão de que, em pessoas que passam pela cirurgia muito precocemente, o possível estigma que o procedimento visa evitar pode ocorrer de maneira muito pior mais tarde, como é o caso de M.C.

O caso de Money

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Depois de um experimento extremamente controverso, realizado com a ajuda do psicólogo John Money, que na década de 1950 começou a estudar identidade de gênero, a problematização da cirurgia realizada em bebês passou a ser cada vez mais debatida.

Basicamente um dos experimentos de Money consistiu em acompanhar dois irmãos gêmeos, nascidos meninos. Ao passar por uma cirurgia de circuncisão, um dos garotos, que ainda era bebê, teve o pênis completamente removido. Procurado pelos pais da criança, Money decidiu que o melhor seria realizar uma cirurgia de mudança de sexo na criança e criá-la como uma menina, na certeza de que gênero é algo que pode ser “ensinado”.

Durante dez anos o psicólogo acompanhou a evolução da criança e fundamentou suas teorias com base no “sucesso” do caso, afinal ela se vestia, era tratada e foi educada como se fosse, de fato, uma menina. O problema é que alguns anos depois o biólogo Milton Diamond resolveu investigar a vida dessa criança que havia passado pelo experimento.

undefinedDavid Raimer

Aos 14 anos, enfrentando questões sérias quanto à própria identidade, a “menina” passou pela primeira cirurgia para voltar a ser homem, gênero com o qual sempre se identificou. O homem que passou pelo experimento polêmico de Money agora se chamava David Raimer, e em 2004 ele acabou se matando com um tiro na cabeça.

Se a intenção de Money era provar que identidade de gênero é algo que pode ser “ensinado”, o efeito real acabou sendo o oposto do desejado. A contribuição maior do psicólogo parece ter sido, então, no sentido de que identidade de gênero existe, sim, e é extremamente normal que algumas pessoas não se identifiquem com suas características biológicas de gênero. Induzir alguém a se identificar com determinado gênero, no entanto, está longe de ser o ideal.

O caso polêmico de Money deu abertura para que inúmeras pessoas, que passaram por cirurgias de correção intersexual durante a infância, relatassem seus traumas com relação ao procedimento cirúrgico e às consequências dessa transformação em suas vidas. Esses pacientes relatam problemas de ordem psicológica, vergonha, dor física, cicatrizes e dificuldades em suas vidas sexuais.

De volta ao caso de M.C.

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Quando nasceu, M.C. foi registrado pela equipe médica responsável pelo parto como menino. Em seus prontuários médicos, a condição de M.C. é descrita como “confusa”, e um teste de DNA, realizado algum tempo depois, revelou que ele tinha os dois cromossomos X, que definem o gênero feminino. A partir daí, M.C. foi considerado menina. Deveria ser educado dessa maneira, então?

A criança foi abandonada pelo pai biológico quando tinha apenas três meses de idade e, logo em seguida, a mãe biológica perdeu a guarda do filho, que foi encaminhado para adoção. Em 2006, o caso de M.C. foi avaliado por dois médicos especialistas: o primeiro um cirurgião especialista em urologia pediátrica e o segundo um endocrinologista que ficou focado em resolver questões hormonais.

Nos prontuários dos dois médicos fica claro que, com base em questões hormonais, M.C. era menino. Ainda assim, a equipe acabou decidindo que a criança deveria passar por um processo de cirurgia que o “transformasse” em menina.

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Quando tinha um ano e meio, M.C. foi submetido a um procedimento que removeu seu pênis e o reduziu ao tamanho de um clitóris. O tecido do testículo foi retirado e o que restou de seu saco escrotal serviu como base para a formação do canal vaginal.

Casos como os de M.C. têm ganhado espaços em tribunais de todo o mundo. A antropóloga médica Katrina Karkazis, de Stanford, acredita que está na hora de levarmos a sério os depoimentos desses pacientes que se dizem infelizes devido à realização precoce da cirurgia, ainda que eles sejam uma minoria. “Essa é uma questão da nossa geração de médicos, não da geração de Money”, afirma.

É verdade que as técnicas de cirurgia melhoraram nas últimas décadas, assim como o apoio psicológico às crianças que passam pelo procedimento, que melhorou. O que preocupa é o aumento no número de cirurgias reparatórias realizadas em crianças.

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“A verdade é que nos Estados Unidos a maioria das crianças intersexuais está passando pela cirurgia. E é uma cirurgia relativamente agressiva”, afirmou o urologista pediátrico Michael DiSandro, de São Francisco. O especialista afirma que muitos hospitais deixam a decisão a respeito do gênero que vai prevalecer ser tomada por apenas um ou dois médicos, quando o ideal é que uma equipe avalie o caso com muito critério.

O professor de pediatria e genética humana Eric Vilain é um dos profissionais que buscam explorar mais as questões de gênero dentro da medicina. Ele admite que esse aspecto ainda é minimamente conhecido dentro da comunidade médica. Com seu grupo de pesquisadores, Vilain tenta encontrar uma maneira de identificar o gênero de uma pessoa por exames biológicos, com a intenção de tornar esse um protocolo na questão das cirurgias realizadas em bebês intersexuais. Para Pam Crawford, mãe de M.C., ninguém deveria ter o direito de realizar esses procedimentos.

Por outro lado, os especialistas nesses tipos de cirurgias acreditam que deixar de realizar os procedimentos em bebês seria ainda pior. “Aqueles que defendem que as cirurgias deixem de acontecer não têm qualquer evidência de que os resultados disso seriam melhores do que o que estamos fazendo agora”, defende o urologista pediátrico Barry Kogan. “Nós certamente podemos ser criticados pelos erros cometidos no passado, mas acho que isso pode facilmente resultar em traumas psicológicos e em erros se seguirmos para o outro extremo”, complementa.

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DiSandro acredita que realizar a cirurgia enquanto os pacientes são bebês evita sofrimentos futuros. “Forçar crianças a conviverem com as duas genitálias é realmente difícil – isso é quase antiético”, diz ele.

Por outro lado, o número de estudos que avaliam os efeitos psicológicos em crianças que não passaram pelo procedimento é muito pequeno. Além do mais, os resultados não chegam a conclusões muito claras. Alguns dizem que não há diferenças específicas com relação à qualidade de vida dessas pessoas, mas outros apontam diferenças em questões de educação, empregabilidade e casamento.

Hida Viloria, que cresceu sem realizar o procedimento cirúrgico, diz que é possível que uma pessoa cresça sendo intersexual e que seja perfeitamente feliz com isso: “Não é tão difícil ser intersexual como todo mundo acha que é – pelo menos é nisso que acredito”, resume.

Mesmo na adolescência, Hida, que se identifica como mulher, teve uma vida normal, ainda que sua aparência fosse considerada masculinizada. Ela era líder de torcida e namorava meninos. Com o passar do tempo, percebeu que se sentia atraída por mulheres e atualmente é casada com uma mulher, com quem tem um filho de oito anos.

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Enquanto isso, Pam aguarda pela decisão judicial a respeito de M.C. O caso tem ganhado cada vez mais repercussão, o que é positivo por trazer à tona a discussão sobre o assunto.

Atualmente, M.C. vive como um garoto, embora ainda sinta medo de ser repreendido de alguma maneira ao utilizar banheiros masculinos, por exemplo. A preocupação dos pais do garoto é com relação à puberdade, que pode trazer mudanças anatômicas como o crescimento de seios e a menstruação. De qualquer forma, quando isso acontecer, a família afirma que vai procurar ajuda médica para realizar terapias hormonais.

É verdade que M.C possivelmente precisaria realizar terapias hormonais e procedimentos cirúrgicos. O que a família questiona é o fato de que o garoto simplesmente não teve a opção de decidir a respeito do próprio corpo e que, no final das contas, a decisão feita pela equipe médica não é a mesma que ele teria, se pudesse escolher hoje.

“Nós simplesmente odiamos o fato de que as escolhas que foram feitas poderiam ter um impacto significativo em sua vida como homem. Nós apenas não queremos que as pessoas precisem passar pelo que ele está passando”, resume a mãe.

Ainda que a realidade da condição intersexual não faça parte da vida da maioria das pessoas, é interessante observarmos esses casos para tentarmos entender melhor as questões de identidade de gênero e respeitar qualquer condição relacionada ao tema, que é alvo de tanto preconceito e motivo de tantos crimes de ódio.

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