Como os games moldam os seus sonhos?

13/05/2014 às 07:334 min de leitura

Você já se viu alguma vez em uma condição particularmente perigosa, talvez rodeado por soldados inimigos — com morteiros voando para todos os lados —, em uma situação que demanda ação rápida? Ou, quem sabe, você se viu transportado para uma Idade Média colorida pelo fantástico, perseguido por um dragão enquanto uma velha ponte de pedra cai rapidamente aos pedaços sob os seus pés.

Isso se parece com um jogo, é claro. Mas também poderia ser um sonho, não? O mais curioso, entretanto, é que, de acordo com alguns pesquisadores, a diferença entre as duas situações não é assim tão grande — na medida em que ambas se referem a “realidades alternativas”.

Ademais, o que é igualmente curioso, jogadores inveterados de video game tendem a ter uma vida onírica um tanto diferente, quando comparados a pessoas pouco ou absolutamente não afeitas ao entretenimento eletrônico. De acordo com a psicóloga Jayne Gachenbach, por exemplo, jogadores hardcore normalmente desenvolvem sonhos mais bizarros — cheios de monstruosidades e situações absurdas.

Mas não é só isso. A pesquisadora da universidade canadense de Grant MacEwan também descobriu que os tais sonhos bizarros normalmente se refletem em uma vida de vigília (desperta) mais criativa — na medida em que o “matador de dragões” talvez enxergue o cotidiano como mais um cenário a ser vencido.

“O maior paralelo entre os jogos e os sonhos é que, em ambos os casos, você precisa lidar com uma realidade diversa, seja o cenário em volta construído biológica ou tecnologicamente”, disse Gachenbach em entrevista ao site The Verge. “É interessante pensar em como essas realidades alternativas se traduzem para a vida consciente, quando você está, de fato, reagindo a impressões do mundo real.” Isso se você for mesmo hardcore, é verdade.

Sonhos “hardcore”

As descobertas mencionadas surgiram de uma pesquisa de vários anos. Conforme revelou em entrevista ao site The Verge, Gackenbach teve a ideia de sondar a vida noturna de jogadores aficionados após seu filho, Teace (com quem coescreveu um livro sobre jogos posteriormente), ter descoberto os prazeres do bom Super Nintendo no início da década de 1990.

Entretanto, convém caracterizar o que foi encarado pela pesquisadora como “jogatina hardcore”. Basicamente, você é um jogador inveterado se joga “mais de duas horas por dia”, diversos dias por semana, preferencialmente desde tenra idade. De acordo com esse critério, a psicóloga acabou por conduzir um experimento com vários voluntários, chegando, então, a várias conclusões.

De forma geral, a jogatina constante parece afetar a forma como o imaginário é formado durante os sonhos. E isso pode aparecer em uma boa noite de sono de diversas formas.

Sonhos lúcidos e percepção espacial

Em recente edição da revista Dreaming, Gackenbach publicou uma hipótese bastante curiosa. Ela e outros colegas da universidade descobriram uma ligação considerável entre a jogatina hardcore e a frequência dos chamados “sonhos lúcidos” — aqueles dos quais se lembra em maiores detalhes e, sobretudo, se tem a impressão de poder “controlar” a forma como as coisas se desenvolvem.

A pesquisa foi realizada em 2006, contando com 125 participantes, entre jogadores e não jogadores. Mas a frequência de sonhos lúcidos também revelou outra particularidade. Tanto a organização espacial quanto a capacidade de manter o foco se revelaram muito mais pronunciadas entre os jogadores inveterados de games.

Uma pesquisa conduzida pelos psicólogos Peter Frensch e Lynn Okagaki mostrou que voluntários que jogavam Tetris por 30 minutos antes de um teste de percepção espacial se saiam consideravelmente melhor do que aqueles que não haviam jogado.

Sonhos em 1ª ou em 3ª pessoa

Eis outra particularidade curiosa: jogadores inveterados tendem a transportar para dentro de seus sonhos também as perspectivas às quais se habituam durante as partidas — normalmente em 1ª pessoa (em que a câmera representa os olhos do jogador) ou em 3ª pessoa (com a câmera posicionada sobre os ombros ou correndo paralelamente ao personagem).

“Os jogadores já sabem o que é estar em controle de uma realidade alternativa”, disse Gackenbach ao referido veículo. “Dessa forma, é razoável que eles percebam, ‘Ei! Eu estou em um sonho’, e também que saibam manipular a situação.” E mais: alguns jogadores afirmam realmente poder efetuar “trocas entre as câmeras” durante os sonhos.

Pesadelos não me assustam!

Para grande parte das pessoas, a ocorrência de um sonho particularmente desagradável é motivo mais do que suficiente para interromper o sono — normalmente agitado e empapado de suor. Bem, mas parece que os jogadores aficionados têm também mais “fibra” nesses momentos.

É claro que não se trata exatamente disso. Na verdade, conforme revelou a Gackenbach, os jogadores constantes normalmente estão mais acostumados a lidar com situações adversas — chegando mesmo a encontrar prazer nelas! Como resultado, um monstro cuspindo fogo pode ser mais um convite a empunhar a espada do que a sair correndo do João Pestana.

Uma curiosidade, entretanto, é que o fato foi observado predominantemente em jogadores homens. De acordo com a psicóloga, trata-se, possivelmente, de uma relação com a forma particular como as mulheres socializam. Além disso, pode se tratar também da forma igualmente singular com que se arranja o “microcosmo” social entre jogadores do sexo masculino.

Efeito Tetris

O termo “efeito Tetris” foi utilizado pela primeira vez em 1994 em um artigo de Jeffrey Goldsmith intitulado “Este é o seu cérebro com Tetris”. Originalmente, tratava-se dos efeitos curiosos que a jogatina inveterada de Tetris — aquele joguinho onipresente de blocos que despencam pela tela — podia gerar na mente dos jogadores, embora a ideia possa ser facilmente aplicada a praticamente qualquer entretenimento eletrônico.

Reprodução/Wikimedia Commons

“Nenhum lar era doce o suficiente em 1990 sem um Game Boy”, escreveu Goldsmith. Ele continua:

“Naquele ano, eu fui passar uma semana com um amigo em Tóquio, e Tetris acabou escravizando o meu cérebro. Durante a noite, formas geométricas surgiam da escuridão enquanto eu estava deitado em meu tatami emprestado. Durante o dia, eu me sentava no sofá e jogava Tetris furiosamente. Durante os raros passioe, eu encaixava carros,  árvores e pessoas visualmente (...).”

Para o autor, trata-se de um “efeito bioquímico”, de uma “metáfora reducionista” para a curiosidade, a invenção e a urgência criativa. “Encaixar formas é organizar, construir, fazer escolhas, arrumar e compreender.”

Sonhos e prevenção de traumas

E, sim, esse efeito singular também pode ser experimentado durante os sonhos. Há relatos de jogadores que sonhavam repetidas vezes com tetraminós — figuras formadas por quatro quadrados idênticos — caindo na frente dos olhos. Mas algumas conclusões tornam a coisa ainda mais curiosa.

Um estudo publicado em Oxford em 2009 sugere que jogar Tetris — e jogos afins — ajuda a prevenir a formação de memórias traumáticas. De acordo com os pesquisadores, se um “tratamento baseado em jogos” for aplicado pouco depois de um evento potencialmente traumárico, a ocupação da mente com as formas, encaixes e táticas ajuda a impedir que a mente passe a recitar as imagens traumáticas, os chamados flashbacks.

Um treino para o mundo real

Parece razoável apostar, portanto, que a forma como os jogos afetam os sonhos é também, em grande medida, a forma como eles afetam todo o comportamento de um jogador. Conforme lembra Gackenbach, entretanto, há ainda a limitação óbvia que sempre permeou todo o estudo da vida onírica: não se pode visualizar diretamente um sonho, sendo preciso contentar-se com relatos de voluntários.

De qualquer forma, parece ser um consenso entre diversos pesquisadores que a manutenção das realidades alternativas — seja em jogos ou em sonhos — serve como uma espécie de treinamento para a vida de vigília. Dessa forma, não é preciso se assustar da próxima vez em que você sonhar com monstros ou peças poligonais despencando do teto. Trata-se apenas do seu cérebro se organizando e aproveitando as experiências vividas.

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