Artes/cultura
02/07/2015 às 12:52•4 min de leitura
Em 1903, o Parlamento Britânico introduziu um limite de velocidade de 32 km/h nas vias públicas da Inglaterra, inviabilizando qualquer tipo de disputas automotivas por lá.
Em uma época em que tanto as motos quanto os carros estavam começando a ganhar espaço no mundo para uso "normal", e muito antes de alguém sequer pensar em criar pistas específicas para disputas entre essas máquinas, já existiam pessoas dispostas a correr com seus carros e motocicletas para ver quem era mais rápido. O ser humano é competitivo, afinal.
Foi a partir dessa proibição que Sir Julian Orde, secretário do Clube de Automóveis da Irlanda e Grã-Bretanha, resolveu recorrer às autoridades de uma pequena ilha situada entre a Inglaterra e a Irlanda para que as competições acontecessem nas estradas de lá. Mal sabiam os envolvidos que eles estavam dando o primeiro passo para a criação de uma das mais tradicionais, perigosas e fantásticas corridas do mundo: o Tourist Trophy da Ilha de Man.
De acordo com o censo de 2011, a diminuta porção de terra no meio do mar acolhe pouco mais de 84 mil habitantes. Conhecida também por ser uma espécie de paraíso fiscal na Grã-Bretanha, devido aos baixíssimos impostos, a Ilha de Man faz parte do Reino Unido e tem como chefe de estado a Rainha Elizabeth II, mas é governada de forma centralizada pelo seu próprio parlamento.
Com uma área de 572 quilômetros quadrados, a Ilha de Man é composta majoritariamente por campos e áreas rurais, e suas áreas urbanas mais importantes são a capital Douglas e o distrito de Ramsey.
Graças às belas paisagens e também aos incentivos do governo (em uma tentativa de popularizar mais o lugar), diversas produtoras inglesas optam por usar a ilha como cenário para a gravação de seus filmes – "Harry Potter e a Câmara Secreta" teve alguns takes filmados por lá.
Mas, sem dúvida alguma, o que torna a Ilha de Man especial – e que também serve de base para economia do lugar – é um evento que acontece anualmente e que dura duas semanas.
O TT, como é mais conhecido, começou em 1907 e, desde então, movimenta multidões de aficionados por velocidade em uma peregrinação anual para prestigiar o evento motociclístico centenário. São duas semanas dedicadas ao Tourist Trophy durante o verão no Hemisfério Norte.
A largada é individual e cada piloto sai com 10 segundos de intervalo dos outros. Isso porque a disputa não é para quem chega primeiro, e sim para quem termina a corrida no menor tempo relativo. Não é uma questão de simplesmente vencer seu oponente: é uma questão de vencer a pista.
O que torna o TT diferente das demais corridas e competições por aí é que o seu percurso tem 60,7 quilômetros de vias públicas, com mais de 200 curvas feitas entre estradas e ruas que cortam as áreas rurais e os vilarejos da ilha – uma herança de tempos nos quais pistas de corrida não haviam nem sido pensadas.
Isso significa que não existem áreas de escape, como nas pistas de corrida: os pilotos correm a mais de 300 km/h em meio a postes, muros e árvores ao longo do percurso, além de ter que lidar com todas as imperfeições de estradas normais.
É por isso que a corrida é considerada também a mais perigosa do mundo: desde sua criação, o percurso conhecido como Snaefell Mountain Course – batizado em função da área montanhosa mais alta da ilha – já vitimou mais de 240 pilotos, em uma mórbida média de mais de duas pessoas por edição do evento.
A velocidade média alcançada na última edição do evento, que aconteceu em junho desse ano, foi de mais de 212 quilômetros por hora, e os mais de 60 quilômetros são percorridos em pouco mais de 17 minutos. A ode à velocidade é reforçada pelo troféu do evento: o "Espírito do TT", representado pela imagem do deus grego Hermes sobre uma roda com asas.
Para correr na ilha, embora seja necessário ter técnica, o principal requerimento é ter muita coragem. Até mesmo Valentino Rossi, o grande nome da motovelocidade moderna, disse que, para se correr no Tourist Trophy, é necessário um "grande par de bolas".
Porém, é justamente o risco altíssimo de se correr na Ilha de Man que cria todo o misticismo que circunda o Tourist Trophy: é como se ele fosse uma memória remanescente dos tempos de corrida em sua forma mais crua e pura, que se recusa a ceder aos padrões de um mundo competitivo obcecado por segurança.
Essa teimosia, no entanto, foi o que custou ao percurso Snaeffel sua retirada do calendário oficial do Campeonato Mundial de Motociclismo em 1976 depois de um boicote feito por pilotos preocupados com sua integridade. Mas apesar de ter sofrido um grande baque, foi a paixão dos participantes pela velocidade que manteve o evento de pé até hoje.
Mas por que se arriscar a mais de 300 km/h em meio a postes e vilarejos? Certamente não é pelo dinheiro. Perto de categorias mais prestigiadas no mundo do automobilismo e do motociclismo, as corridas de estrada são bem mais simples quando o assunto é o valor da premiação.
Para entrar na competição, no entanto, não é assim tão fácil: é necessário participar de outras corridas que acontecem durante o ano e provar que você realmente sabe o que está fazendo. Essa foi uma forma dos organizadores do evento encontraram para evitar que mais pessoas morram.
Existe, no entanto, um dia específico no qual o mesmo percurso percorrido pelos pilotos fica aberto ao público – e sem qualquer limite de velocidade. Não é à toa que esse dia foi batizado de Mad Sunday, ou Domingo Maluco.
Mas o que realmente move os competidores é a adrenalina que vem como recompensa pelo alto risco. Algo que, segundo Connor Cummins em um documentário a respeito da corrida, é impossível de se conseguir em qualquer outro tipo de competição. Para o piloto, natural da Ilha de Man e participante do desde 2006, o TT é "a experiência mais poderosa que você ter na sua vida".
Detalhe: isso veio de quem sofreu um acidente gravíssimo durante a competição em 2010 e quase perdeu a vida, mas que no ano seguinte estava lá de volta em cima de uma moto. Outros pilotos também descrevem a sensação de correr na ilha como uma droga poderosa, algo difícil até mesmo de se imaginar sem.
E é isso que tem sustentado o Tourist Trophy da Ilha de Man há mais de 100 anos.
Nas últimas edições do Tourist Trophy, a ilha chegou a comportar quase o triplo de sua população original e, segundo os organizadores, a cada ano que passa eles estão cada vez mais próximos do limite de ocupação.
Então, se algum dia alguém perguntar "onde tem estrada pra correr desse jeito" sempre que aparece uma moto ou carro potente por aí, você já sabe: a velocidade tem um lar com endereço certo, e esse lugar é a Ilha de Man.