Estilo de vida
21/06/2017 às 02:00•7 min de leitura
Independente de qual seja o seu posicionamento a respeito, você já deve ter ouvido por aí a expressão “cura gay”, que nos dá a entender que a homossexualidade é uma doença, justamente por essa questão de “cura”. O fato é que desde 1999 o Conselho Federal de Psicologia já não considera questões relacionadas à orientação sexual como doenças ou transtornos psicológicos. Só por isso o assunto já poderia ser arquivado, mas, se algumas pessoas ainda têm dúvidas, não há motivos para não tentarmos esclarecê-las.
A página do órgão deixa bastante claro que o psicólogo é um profissional da área de saúde e que, frequentemente, trata questões relacionadas à sexualidade. Da mesma maneira, explica que a função desse profissional no que diz respeito à sexualidade é justamente esclarecer questões sobre existência de práticas sexuais consideradas fora do padrão tradicional da nossa sociedade, de modo que a intenção final é superar casos de preconceito e discriminação.
Dessa forma, a resolução deixa claro também que os psicólogos “não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados”. Ou seja: a homossexualidade não requer tratamento.
Há exatos 30 anos, a homossexualidade deixou de ser tratada como uma doença pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Em artigo publicado no próprio site do CFM, escrito pelo médico Dr. Leonardo Sérvio Luz, a visão patológica do comportamento homoafetivo é descrita como um “erro da comunidade científica internacional”.
Nesse sentido, o Conselho chegou a mudar sua conduta antes mesmo da própria Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Classificação Internacional das Doenças (CID). Para a OMS, a homossexualidade deixou de ser doença em 1990, e, de acordo com a CID, em 1992.
Uma pessoa heterossexual que não convive com gays e lésbicas pode ter dificuldades para entender o que é orientação sexual. Aliás, nesse sentido, evita-se utilizar o termo “opção sexual”, afinal já é cientificamente comprovado que a homossexualidade não é uma escolha, mas sim, como disse o Dr. Drauzio Varella a respeito, “um fato biológico inerente à condição humana”.
Da mesma forma que um heterossexual dificilmente se sentiria confortável em uma relação sexual com alguém do mesmo sexo, o homossexual também não sente atração por pessoas do sexo oposto. Não é algo que se possa controlar, escolher.
Segundo a American Psychological Association, orientação sexual é um padrão emocional, romântico e/ou sexual de atração por homens, mulheres ou ambos os sexos. O documento explica, ainda, que orientação sexual é também o senso de identidade de uma pessoa, geralmente baseado naqueles pelos quais sente atração, bem como em seu padrão comportamental.
Orientação sexual, portanto, independe do gênero de cada pessoa e, inclusive, da identidade de gênero de cada pessoa. Nesse sentido, é preciso entender que há quem não se identifique com o próprio gênero – você já imaginou como seria se sentir homem ou mulher, mas ser biologicamente o oposto disso? Eis um conflito que ninguém escolheria viver, certo?
Em alguns casos, quando a pessoa faz tratamentos hormonais e cirúrgicos para mudar de sexo, é comum ouvirmos determinados questionamentos. “Era homem, virou mulher e agora vai namorar outra mulher?”, alguns perguntam, confundindo orientação sexual com identidade de gênero. Esse exemplo ilustra bem a diferença entre uma coisa e outra.
Identidade de gênero é a forma como a pessoa se sente psicologicamente – mesmo sendo biologicamente homem e sentindo atração por mulheres, por exemplo, a pessoa pode se identificar psicologicamente com o gênero feminino.
Ainda que não seja muito difícil entender que orientação sexual e identidade de gênero são questões inerentes, ou seja, que não são escolhidas, há a questão de que o comportamento homossexual, assim como o transgênero, não faz parte do modelo tradicional de família e sociedade.
Mesmo que cada indivíduo tenha o direito à liberdade sobre a própria vida, algumas questões políticas e religiosas acabam interferindo nesse sentido. Se há apenas 30 anos a homossexualidade ainda era considerada doença, não é de se espantar que muita gente tenha acreditado ou esperado uma cura.
Nesse sentido, muitos tratamentos já foram realizados na tentativa de fazer uma “conversão” e, no aspecto religioso, livrar os homossexuais do “pecado”. Em 1979, William Masters e sua esposa Virginia Johnson realizavam estudos com pessoas homossexuais e garantiam que a “cura” era realmente possível. Em cinco anos de tratamentos com diversos homossexuais homens e mulheres, o casal dizia ter solucionado mais de 70% dos casos. O problema? Nenhum desses casos foi comprovado, assim como nenhum “ex-gay” ou nenhuma “ex-lésbica” se pronunciou a respeito.
Em artigo publicado no Scientific American, Thomas Maier conta que falou com Lynn Strenkofsky, que trabalhava na clínica de Masters e Johnson organizando a agenda de pacientes e consultas. Estranhamente, Strenkofsky disse nunca ter visto qualquer caso de conversão bem-sucedido.
Outra questão intrigante: quando Robert Kolodny, um dos sócios da clínica do casal, pediu para ver provas de alguma conversão bem-sucedida, Master e Johnson se recusaram a dar tais esclarecimentos. Com o passar do tempo, e depois de pressionar seus sócios, Kolodny chegou à conclusão de que os tratamentos não funcionavam e que o resultado positivo divulgado era uma mentira. Detalhe: Masters se dizia terapeuta, embora nunca tenha tido um diploma para exercer a profissão.
Alguns anos depois, ao analisar a obra do marido, Johnson o definiu como “criativo” ao finalmente admitir que não há tratamento para a homossexualidade. Masters morreu afirmando que era possível "curar” pessoas gays, ainda que nunca tenha conseguido, de fato, provar isso.
Dr. Christian Jessen
Há quase dois anos, o médico Dr. Christian Jessen, que é homossexual, aceitou passar por três tentativas de “cura”: uma de aversão, no Reino Unido; uma de alteração cerebral; e outra de reabilitação, nos EUA. Todo o processo foi registrado por ele e, depois, transformado em um documentário.
O primeiro tratamento foi à base de xarope de ipeca, conhecido por provocar vômito. Enquanto vomitava durante horas, Jessen era obrigado a olhar imagens de homens sem roupa ao mesmo tempo que ouvia mensagens sobre a homossexualidade ser uma prática pecadora. Além disso, as mensagens diziam que ele precisaria querer fazer sexo com mulheres.
Segundo Dr. Jessen, esse tipo de terapia foi bastante utilizada entre os anos de 1920 e 1980, quando os “pacientes” recebiam injeções a cada duas horas para provocar vômito e diarreia. A ideia desse tipo de terapia era fazer com que o homossexual assimilasse a sensação de enjoo e desconforto à imagem de uma pessoa do mesmo sexo. Teoricamente, depois disso, pensamentos homossexuais provocariam o mesmo enjoo. Nenhum homossexual foi “curado” depois de passar por esse tratamento.
“Eu não consigo acreditar que pessoas como eu – um médico – iriam realmente prescrever isso a pessoas como eu – gays”, disse Jessen a respeito do tratamento bizarro que o fez vomitar compulsivamente. No documentário, Jessen fala também a respeito das questões religiosas sobre a homossexualidade: “A coisa mais chocante é que esses líderes religiosos não acreditam que nós nascemos gays, mas sim que é uma condição provocada por um trauma de infância”.
Para saber o que alguns líderes religiosos achavam a respeito de crianças homossexuais, Jessen tentou falar com pastores e padres, mas ninguém quis gravar entrevista. Por outro lado, ele conseguiu falar com jovens religiosos sobre o tema – a maioria também acredita que ser gay é uma condição sobrenatural. Duas jovens, uma de 16 e outra de 20 anos, disseram que homossexuais são pessoas possuídas por espíritos malignos.
Decepcionado, Jessen disse que tinha esperanças de que pessoas mais novas fossem menos homofóbicas e tivessem uma cabeça mais aberta para essa questão. “Me entristece profundamente esse não ter sido o caso”, resumiu.
Na segunda terapia, Jessen procurou um ex-pastor que afirma ser também médico – depois de uma breve pesquisa, porém, Jessen descobriu que ele não tinha um diploma de Medicina. Essa nova abordagem de “cura”, que tenta mudar o cérebro da pessoa, custa US$ 250 (cerca de R$ 800), e a promessa é a de que o “paciente” seja informado também sobre as razões que o levaram a ser homossexual, além de ter acesso a uma espécie de medidor de homossexualidade, que diria quão gay uma pessoa é. Tudo isso analisando-se a forma como o paciente colore o desenho de um cérebro.
Seguindo as instruções, Jessen pintou o desenho à sua frente e depois repassou o conteúdo para que o médico, que é daltônico, avaliasse a questão das cores. “Ele me disse que as partes que eu pintei de preto simbolizavam todo o abuso que sofri na infância, o que é estranho, porque eu tive uma infância feliz e uma relação de muito amor com os meus pais”, disse.
Na hora da reabilitação gay, Jessen visitou John Smid, que defendeu a “cura gay” por 18 anos e se revelou homossexual no final de 2014. Até 2007, quando finalmente aceitou a própria homossexualidade, Smid submetia homossexuais à reabilitação, isolando totalmente o “paciente” de seu “vício”.
Esse é o tratamento mais caro e mais demorado: são 3 meses de internamento, sendo que o custo é de US$ 3 mil por mês (aproximadamente R$ 9 mil). Nesse período, todas as coisas que “deixam uma pessoa gay”, como roupas e músicas, são retiradas do “paciente”. A única música permitida é a gospel. Até mesmo a música clássica é proibida.
O próprio Smid, um ex-homofóbico, agora curado, afirma que o processo de reabilitação nunca teve qualquer resultado positivo relacionado a essa terapia de reclusão: “Eu nunca conheci um homem que tenha experimentado a mudança de homossexual para heterossexual”.
Como conclusão de suas três tentativas de cura, Jessen declarou: “Eu espero que jovens e pessoas vulneráveis que talvez tenham considerado essas terapias assistam ao programa e percebam que é tudo nonsense e que eles não têm absolutamente nada de que se envergonhar”.
Sergio Viula
Recentemente, o ex-pastor Sergio Viula, que é também filósofo e teólogo, reafirmou que a “cura gay” simplesmente não existe. Ele demorou a aceitar a própria homossexualidade e fundou o MOSES (Movimento pela Sexualidade Sadia), que defendia a possibilidade de “cura gay”. Sobre o tempo à frente do MOSES, Viula comentou: “Eu era uma zebra pintada de branco”.
Antes de aceitar e assumir sua homossexualidade, Viula foi casado com uma mulher por 14 anos, teve dois filhos e foi pastor durante nove anos. Aos 34 anos, radicalizou: pediu o divórcio, se tornou ateu e manteve um relacionamento homoafetivo por sete anos. A história de Viula e de suas falhas tentativas de realizar a “cura gay” estão disponíveis em seu livro “Em Busca de Mim Mesmo”. Além disso, ele alimenta o blog Fora do Armário.
Em entrevista ao UOL, Viula afirma que era gay desde criança, que sofreu bullying e sabia que era diferente dos outros meninos. “Comecei a me perguntar o que tinha de errado comigo. Comecei a perceber que aquilo que eu sentia podia ser um problema para os outros. Foi quando passou a ser um problema para mim. E aí veio a rejeição, a auto-homofobia”.
Ainda que existam todas as evidências possíveis de que a “cura gay” não existe, muitas pessoas – e até alguns psicólogos – insistem em bater nessa tecla. Em tempos de modernização, há até aplicativos destinados a ensinar o passo a passo para a tal cura.
Um desses aplicativos promete a conversão homossexual no prazo de 60 dias, em um esquema de 10 passos: admitir ser homossexual; passar a tratar a homossexualidade como um pecado; aceitar mudar em nome de Deus; sempre ler a Bíblia (mas apenas as passagens indicadas, não a obra toda); se afastar de qualquer coisa remotamente gay; perceber que a homossexualidade torna a pessoa sozinha; fazer as pazes com quem já tentou alertá-lo sobre os perigos de ser gay; sempre se lembrar do processo de cura; imaginar a si mesmo como uma pessoa estragada; e, por fim, saber que só será salvo quem realmente tiver fé.
O pai da psicanálise, cujos estudos praticamente giram em torno da sexualidade humana, certa vez respondeu à carta de um homem que estava preocupado com o fato de que seu filho pudesse ser gay.
A carta foi escrita em 1935 e depois foi parar nas mãos de Alfred Kinsey, que pesquisou a sexualidade humana a fundo e elaborou a Escala Kinsey. Embora Freud fosse um terapeuta que acreditava na cura gay, não foi isso o que ele sugeriu ao tal pai preocupado.
“Homossexualidade certamente não é uma vantagem, mas não é nada do que se envergonhar, não é um vício, não é uma degradação, não pode ser classificada como uma doença”, disse o psicanalista.
“Muitos indivíduos altamente respeitados dos tempos antigos e modernos foram homossexuais, inúmeros grandes homens entre eles (Platão, Michelangelo, Leonardo da Vinci etc). É uma grande injustiça falar sobre homossexualidade como um crime – e uma crueldade também”, defendeu Freud.
Ao que tudo indica, a “cura gay” é mais uma falácia na qual muitas pessoas ainda acreditam. O que, por outro lado, é uma verdade assustadora é o número de crimes contra homossexuais, especialmente no Brasil, campeão mundial nesse sentido.
A intolerância, o preconceito, o fanatismo, a falta de empatia e o ódio nos colocaram em um ranking assustador: em relação aos EUA, temos 785% de casos a mais de crimes contra homossexuais.
Estima-se que pelo menos 216 pessoas LGBT foram assassinadas em nosso país entre janeiro e setembro de 2014. No ano anterior, o número de vítimas foi 338, o que significa que a cada 28 horas de 2013 uma pessoa foi morta simplesmente por ser gay, lésbica ou transexual. Infelizmente, no Brasil a homofobia ainda não é crime.
Agora nós queremos saber a sua opinião: por que será que a sexualidade alheia incomoda tanto? Você tem a resposta? Compartilhe com a gente nos comentários!
*Publicado em 08/07/2015
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