Ciência
11/01/2017 às 08:00•6 min de leitura
Participando do novo quadro do Mega Curioso que traz matérias de experiências pessoais, venho compartilhar com vocês algumas reflexões sobre a vida de quem precisa usar aparelhos de audição – mesmo que a perda auditiva não seja das mais graves.
Já desde pequena, fiquei conhecida na família como a criança distraída, aquela a quem os adultos diziam alguma coisa e que não respondia. Preocupados com a questão, meus pais me levaram ao médico e fiz a primeira audiometria aos 7 anos de idade – ainda a tenho guardada, junto com todas as audiometrias que já fiz.
Com os resultados, o médico concluiu que eu era ainda muito nova para se ter certeza de que eu tinha mesmo alguma perda auditiva e que, dado que o gráfico mostrava uma perda leve, podia ser mesmo falta de atenção durante os testes. Bem, até o hoje, com 30 anos de idade, o meu gráfico de audiometria é praticamente o mesmo daquela época. Ou seja, não era falta de atenção.
De fato, a minha perda auditiva é leve na maior parte das frequências audíveis e moderada em apenas algumas. Não é como se eu não pudesse viver sem aparelhos – aliás, vivi sem eles até os 15 anos de idade. Sempre consegui compreender as falas das pessoas quando elas falavam numa altura normal e não muito longe. Mas se for alguém acostumado a falar mais baixo, ou talvez em uma conversa mais íntima ou confidencial... Aí eu fico quase como a “velha surda” da Praça é Nossa.
OK, talvez não seja para tanto, mas os aparelhos fazem muita falta no dia a dia. As piores situações são no trabalho, com colegas próximos falando a pouco menos de 2 metros de distância – ou falando com a cabeça virada para o lado oposto ao dos meus ouvidos. Aí fica difícil mesmo. Professor que fala mais baixinho em sala de aula? Peças de teatro assistidas dos lugares reservados a estudantes pagando meia-entrada? Pode esquecer: eu já sei que não vou entender metade se não levar os aparelhos.
Os aparelhos auditivos têm um preço absurdo desde a década de 90, e ele não baixa, pois novas tecnologias entram no lugar das antigas e o custo aumenta. Em 2013, eu tive meu terceiro aparelho (um par), e cada um custou 3 mil reais. Parcelados em 12 vezes, claro. Foi uma das compras mais difíceis de pagar até o fim, mas uma das melhores que fiz na minha vida.
Vamos de volta ao começo. Dado esse preço, que sempre foi absurdo, principalmente para os aparelhos do tipo microcanal (que ficam quase totalmente dentro do ouvido e praticamente imperceptíveis para outras pessoas), não pudemos bancar de uma vez dois aparelhos auditivos lá no fim da década de 90, quando eu tinha cerca de 15 anos. Então compramos um só: melhor um pássaro na mão do que dois voando, não é mesmo?
Mais ou menos. Claro, era melhor ter um aparelho do que nenhum, mas essa experiência de ouvir demais com um ouvido e de menos com outro me deixou um tanto traumatizada e eu fico “para morrer” quando tenho que passar por isso de novo.
Aquele meu primeiro aparelho terminou não durando muito tempo por total falta de cuidado minha, com pilha vazando dentro dele. Na verdade, eu não o usei com muita frequência porque não consegui me adaptar a essa situação de escutar com um ouvido só. Então veio o meu primeiro par, uns dois anos depois. Eu já estava prestes a tentar o vestibular e era mais necessário do que nunca que eu entendesse tudo o que fosse dito em sala de aula.
Então, pela primeira vez, já na adolescência, eu ouvi alguns sons que nunca tinha ouvido antes. Por exemplo, o relógio analógico na parede faz um barulho forte a cada passada de segundos se você está numa sala vazia e silenciosa. A geladeira, então, nem se fala, que coisa mais barulhenta! Sem aparelhos, eu ouço um pouco o som da geladeira, mas não em todo o seu volume. A água começando a ferver na chaleira é outro som que eu não escutava.
Quando você escreve a lápis no papel, ele faz um barulhinho que nunca fui capaz de ouvir sozinha. Aliás, esse som do lápis foi o que fez a minha mãe chorar, quando eu fiquei surpresa ao descobri-lo e fui contar para ela sobre essa grande novidade. Era como se um novo mundo de sons tivesse se aberto para mim naquele momento. E olha que a minha perda auditiva nem pode ser classificada como grave.
Você pode usar aparelho, mas a perda auditiva ainda existe. Lembro-me de uma experiência marcante de procura de emprego, que exigiu um teste de audiometria, pois era para trabalhar o dia todo ao telefone. Por algum motivo, não fiz o teste com os aparelhos. Com o resultado, a recrutadora disse que não podia me contratar: “É para o seu bem. Você precisa preservar a sua audição e esse cargo a coloca em risco”.
Eu não quis saber se era para o meu bem ou não. Eu nem queria tanto aquele emprego. Mas ser rejeitada pela perda auditiva, mesmo para o meu bem, foi uma sensação terrível. Eu liguei chorando para a minha mãe, que me consolou: “Você vai encontrar uma coisa melhor e uma coisa certa para você”, ela disse. E, como toda mãe, ela estava certa.
Quando a gente tem algo que é dado, muitas vezes não damos tanto valor quanto quando suamos para pagá-lo. Para mim não foi diferente com esse novo par de aparelhos. Eles duraram muitos anos, nem sei dizer ao certo, talvez sete ou oito.
Mas eles tinham um grande problema: a pilha, que, quando estava a 1 hora de acabar, fazia o aparelho apitar para dentro do meu ouvido um leve alarme a cada 5 minutos, mais ou menos. Era um som suportável: o problema era você ter que suportá-lo a cada 5 minutos (ou menos) por 1 hora até a pilha acabar. E o pior é quando você estava na rua e não tinha outra pilha nova em mãos porque foi sair com os amigos e levou apenas o celular, sem bolsa.
Depois que a pilha acaba, o aparelho não emite mais som nenhum do mundo externo e funciona como um verdadeiro tampão no ouvido. Ou seja, eu tinha que tirar os dois aparelhos e guardar na calça, porque, com eles no ouvido, eu não ia ouvir nada mesmo.
O resultado você já pode prever: no dia seguinte, mal lembrei dos aparelhos, minha mãe pegou minha calça para lavar e sabe-se lá se eles ficaram no meio do caminho da volta para casa ou foram desintegrados dentro da máquina de lavar. Claro que eu demorei um bom tempo para contar isso para os meus pais.
Os meus atuais aparelhos novinhos (e muito mais bonitinhos do que hoje). Arquivo pessoal.
Cerca de dois anos depois desse incidente de perder os aparelhos, eu tive que comprar um par novo, pois já era impossível trabalhar sem eles. Quem trabalhava mais próximo de mim no dia a dia precisava sempre falar num tom mais alto toda e qualquer coisa para eu ouvir. E eu sempre me preocupo mais com o desconforto das pessoas nessas situações do que com o meu próprio.
Então lá fui eu fazer nova pesquisa e cair para trás com os altíssimos preços dos aparelhos que eu queria. Há diversos modelos e fabricantes disponíveis no mercado, mas o preço é sempre salgado, principalmente para os mais discretos, que são os que eu uso por questão estética. É uma questão pessoal eu não querer que toda pessoa que passe por mim saiba que eu tenho alguma perda auditiva.
Como eu disse anteriormente, 500 reais por mês durante 12 meses não é uma conta fácil de pagar, mas foi uma das melhores que já tive o prazer de fazê-lo.
Hoje, a tecnologia dos meus aparelhos é melhor do que a dos que eu usava anteriormente, claro, e as pilhas não ficam apitando por 1 hora até acabar a carga (e com a sua paciência nesse processo). Os aparelhos são totalmente digitais e processam conjuntos diferentes de sons de maneira distinta e totalmente personalizável. Por exemplo, sons mais altos e que podem causar mais danos ao ouvido (como um show de rock) serão totalmente abafados pelos aparelhos. Pois é, é horrível ir a shows com os aparelhos, parece que o som vem de dentro de uma lata.
Já outros sons são trazidos à tona, como, supostamente, o som da fala (supostamente, porque eu não percebo tanto isso). Por incrível que pareça, os meus aparelhos estão programados para trazer muito à tona sons de estalos. Não sei o porquê disso. Um som de estalo a 5 metros parece que acontece do lado do meu ouvido, e isso termina sendo engraçado pelos sustos que eu levo. Eu fico de voltar à fonoaudióloga para corrigir isso, mas nunca dá tempo na correria do dia a dia.
Na primeira vez em que fui testar um aparelho, a fonoaudióloga disse que nem todos se adaptavam e conseguiam usá-lo o dia todo. Eu achei bobeira isso... Até usar. Os primeiros três ou quatro dias são terríveis: é um mundo tão barulhento, principalmente na rua, que as dores de cabeça são frequentes. São horas de sons um pouco mais altos martelando na sua cabeça. Só que você se acostuma com o passar da primeira semana. Entretanto, se eu ficar uma semana sem usá-los, vou ter que passar por todo esse processo de novo.
Então, eu só uso mesmo os aparelhos dentro do escritório no meu trabalho e quando tenho aulas, ou seja, em casos bem específicos e necessários. Em casa, eu quero ter silêncio – por favor! –, mas isso causa problemas de comunicação, pois eu volto para os irritantes "hã?", "quê?", "oi?". O engraçado é que eu fico irritada pelo fato de as pessoas estarem falando mais baixo do que eu consigo ouvir, quando os aparelhos estão ali, ao meu alcance. Nesses momentos, eu entendo que é difícil compreender por que eu tenho aparelhos e não os uso sempre.
O certo é usar os aparelhos auditivos desde a hora em que acorda até dormir, mas eu não consigo. Estou feliz assim, com minhas pequenas ilhas de momentos de paz e sossego. Os momentos de relaxamento, para mim, incluem tirar os aparelhos. Afinal, se tem alguma vantagem em usá-los, é poder tirá-los. Então, eu vou me aproveitar dela.