Ciência
05/06/2020 às 14:00•3 min de leitura
Em outubro de 2014, aos 21 anos de idade, a norte-coreana Park Yeon-mi parou o mundo ao subir no púlpito do fórum global One Young World, em Dublin (Irlanda), e revelar a sua vida de horrores sob o regime ditatorial de Kim Jong-un.
Park Yeon-mi nasceu em 4 de outubro de 1993 em Hyesan, província de Ryanggang, na Coreia do Norte, tendo uma infância segura e considerada boa para os padrões tradicionais do país. O pai era membro civil do Partido dos Trabalhadores da Coreia e sempre deixou claro o seu repúdio pelo ditador, amaldiçoando-o durante as transmissões televisionadas de reforço ideológico. Ela aprendeu com ele a não dar ouvidos aos estudos sobre adoração ao ditador na escola.
Já a mãe, uma enfermeira do exército, temia Kim Jong-un e repreendia o marido, pedindo que Yeon-mi entendesse o quão perigoso era criticar o regime fora de casa ou mencionar a deslealdade do pai. Para a jovem, a pressão era constante, a ponto de ela acreditar que o ditador poderia ler a sua mente.
Aos quatro anos de idade, Yeon-mi aprendeu que sussurrar é proibido, pois pode significar conspiração. À exceção de músicas tradicionais, não é permitido ter contato com livros de ficção ou romance, filmes, internet, mídia ou teatro; todos são privados de absolutamente tudo que estimule uma opinião própria. A menina aprendeu que o simples fato de pensar era errado.
Não existe liberdade ou vontade, pois quem decide tudo é o ditador. "Expressar dúvida sobre o governo pode resultar em três gerações inteiras de uma família presas ou executadas", relatou ela em seu discurso em 2014.
Quando tinha nove anos, a jovem teve contato com uma das cenas mais pavorosas da sua vida: a execução pública da mãe de uma amiga após ser presa por ter o DVD de um filme de Hollywood em casa. Ela acredita que isso aconteceu porque a garota deve ter contado para alguém que tinha assistido ao filme, considerando que todos eram instruídos e ameaçados a denunciar qualquer tipo de atividade ilícita no país.
A vida de Yeon-mi começou a virar de cabeça para baixo assim que o pai foi pego pelo governo em uma operação de contrabando de metais na capital. O homem foi sentenciado a prestar 17 anos de serviço em um campo de trabalho escravo, porém conseguiu reduzir a pena para três anos após recorrer a contatos internos.
Durante esse tempo, a mãe de Yeon-mi foi levada sob custódia para prestar esclarecimento acerca dos envolvimentos do marido. A jovem e a irmã mais velha, Eun-mi, tiveram que aprender a viver sozinhas. O país passava pela terrível crise conhecida como Grande Fome, que se deu com a separação da União Soviética e a diminuição de suas "taxas favoráveis" de exportação para a Coreia do Norte vindas de Moscou (Rússia). A economia ruiu, milhares de pessoas foram afetadas pela total inanição e outras milhares morreram, a ponto de pilhas de corpos se formarem nas ruas. As duas jovens foram obrigadas a se alimentarem de plantas e insetos para sobreviverem.
Com a libertação dos pais, a família decidiu que fugiria do país de uma vez por todas. Eun-mi foi na frente, para adiantar o processo perigoso. Quando chegou a vez dos demais, os anos de tortura e trabalho pesado já tinham sentenciado o pai da família; o homem foi diagnosticado com câncer e morreu pouco tempo depois, mas exigiu que mãe e filha o deixassem para trás, para não levantarem suspeitas.
Na madrugada de 30 de março de 2007, Yeon-mi, na época com 13 anos de idade, e a mãe começaram a fuga.
Com a ajuda dos coiotes (que organizam travessias ilegais de pessoas para outros países), que transportaram Eun-mi, as duas atravessaram o rio congelado Yalu e três montanhas para entrarem na fronteira com a China, correndo o risco de serem baleadas por soldados norte-coreanos.
Elas chegaram à província chinesa de Jilin, onde tinham a esperança de encontrar Eun-mi em um abrigo ilegal de refugiados, mas era uma emboscada. Um dos coiotes disse que só não as denunciaria para o governo se Yeon-mi tivesse relações sexuais com ele. "Há um ditado na Coreia do Norte: 'As mulheres são fracas, mas as mães são fortes'. Minha mãe permitiu ser estuprada para me proteger", declarou a jovem ativista em seu discurso.
Mãe e filha caíram em uma rede de tráfico de mulheres e ficaram presas por 2 longos anos na casa do homem. Durante esse período, Yeon-mi foi violentada e vendida para vários homens. Quando o coiote se cansou delas, deixou que partissem. Em janeiro de 2009, com a ajuda de missionários chineses, elas conseguiram chegar à Mongólia atravessando o Deserto Gobi. De lá, o governo permitiu que elas voassem para Coreia do Sul.
Enquanto muitos choraram com a história de Yeon-mi, outros contestam a veracidade dela devido às discrepâncias, sem considerarem o fato de que ela não era fluente em inglês quando subiu ao púlpito em 2014. Também ignoram a dificuldade da moça em processar o trauma de ter que revisitar as próprias memórias. De acordo com a ciência, uma história não surge até que o sobrevivente encontre uma maneira de contá-la.
Em 2016, Yeon-mi escreveu o livro Porque Escolhi Viver, em que detalha toda a sua jornada, e pediu perdão por qualquer inconsistência passada. Reunindo-se com a irmã mais velha e a mãe, ela ganhou o mundo e se tornou ativista contra o regime de opressão de seu país de origem.
Estima-se que mais de 300 mil refugiados norte-coreanos estejam abrigados na China, sendo que 70% das mulheres já foram abusadas ou vendidas por menos de US$ 200.
Livre, Park Yeon-mi reforça: "Isso é pelas pessoas que querem contar ao mundo o que têm vontade de dizer".