Estilo de vida
24/08/2023 às 14:00•4 min de leitura
Muito diferente do que pareceu no começo, não foi culpa de Aleksandr Akimov o que aconteceu naquele 26 de abril de 1986. Era 1h23 quando ele acionou o botão do sistema de desligamento emergencial do reator 4 da usina nuclear de Chernobyl, próximo a Pripyat, no norte da Ucrânia soviética.
Ao fazer voltar as hastes de controle ao redor do núcleo do reator, a intenção era que elas diminuíssem a reação nuclear, porém, uma vez que carregavam pontas de grafite, que aceleram a reatividade, elas fizeram a energia "pular" ainda mais devido a uma falha do reator RBMK desenvolvido pelos soviéticos.
Em apenas cinco segundos, a potência aumentou a níveis que o reator não conseguiu suportar, fazendo saltar as barras de controle e cápsulas do canal de combustível que pesavam mais de 350 quilos cada. Então, ocorreu uma explosão de vapor, causada pelo aumento da pressão no núcleo, rompendo o escudo biológico do topo do reator, destruindo os canais de combustível e expelindo grafite puro e altamente radioativo.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
A segunda reação química drástica aconteceu no momento em que o oxigênio acessou o núcleo e se inflamou ao ser combinado com o hidrogênio, superaquecendo o grafite e causando uma segunda explosão que culminou em uma cadeia de reação que abriu um imenso buraco no prédio do reator 4, lançando para os ares uma quantidade imensa de radiação.
A explosão do reator e o subsequente incêndio infestaram a atmosfera com uma quantidade imensa de material radioativo, como isótopos de iodo, césio, estrôncio e plutônio. Espalhando-se por várias partes da Europa, a precipitação radioativa contaminou o solo, a vegetação e a água. Em muitos países, os níveis de material radioativo e radionuclídeos nos alimentos aumentaram até mil vezes imediatamente após a catástrofe. Essas substâncias podem causar severos danos internos, efeitos crônicos a longo prazo na saúde, sobretudo em crianças ou pessoas com sistemas imunológicos mais suscetíveis.
Durante e após o acidente nuclear, o Brasil importou alimentos contaminados com a radiação de Chernobyl como parte do plano de reconstrução econômica pós-Golpe de 1964.
José Sarney. (Fonte: Toda Matéria/Reprodução)
Na foi por acaso que 1980 foi denominada “a década perdida” no Brasil, rescaldo deixado pelo período chamado "milagre econômico" de Médici, que aconteceu sob a aparelhagem da ditadura militar que se estabeleceu no país de 1964 a 1985.
Na metade da década de 1970, o Brasil já estava no buraco com o plano ufanista de elevá-lo a um status irreal de potência mundial. Extremamente endividado, inadimplente e sobrevivendo de empréstimo externos, o país acumulava uma dívida de US$ 90 bilhões, tendo que lidar com produtos internos a preços vertiginosos de tão altos.
Assim, uma onda de desemprego imensa travou a economia até 1990, quando o governo de José Sarney assumiu o posto e deu início ao processo de redemocratização do país.
Em meados de 1986, como resposta ao quadro de hiperinflação que o Brasil enfrentava na época, com taxas extremamente elevadas que afetavam a vida das pessoas e a estabilidade econômica do país, a equipe de técnicos e economistas do governo composta por Dilson Funaro, Edmar Bacha e André Lara Resende criaram o denominado Plano Cruzado.
(Fonte: Cola da Web/Reprodução)
O programa econômico visava combater essa hiperinflação por meio da introdução de medidas drásticas, como o congelamento de preços, o aumento do salário mínimo, e a criação de uma nova moeda para tentar estabilizar a economia e controlar a inflação. A princípio, a medida foi bem sucedida, proporcionando a primeira sensação de estabilidade econômica em anos, refletida em vários âmbitos da sociedade.
Contudo, o Plano Cruzado começou a apresentar os primeiros sinais de desgaste ainda cedo, mostrando que o congelamento de preços levaria a uma inevitável escassez de produtos no mercado interno. Isso porque eles não conseguiam mais cobrir seus custos de produção com os preços fixos, gerando desabastecimento de produtos essenciais em larga escala.
Em 25 de abril daquele mesmo ano, José Carlos Braga, então secretário especial de Abastecimento, disse que o governo também poderia importar produtos essenciais que faltassem no mercado.
Foi assim que toneladas de alimentos irradiados chegaram ao Brasil.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
A falta de conscientização inicial sobre o acidente de Chernobyl, dificuldades na rastreabilidade da origem dos produtos, e as mentiras criadas pelo governo soviético tornaram quase impossível que o Brasil ou qualquer outro país que costumava fazer importações alimentícias, como os Estados Unidos, impedissem que produtos contaminados aportassem em suas terras. O que fez esses alimentos contaminados chegarem à boca da população, no entanto, foram uma série de questões.
Um dia após a explosão do reator 4 ter aberto um buraco no topo da usina nuclear de Chernobyl, a Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal) divulgou um edital listando a compra de alimentos da Europa, incluindo 43 mil toneladas de leite em pó e 2,5 mil toneladas de manteiga.
Dois meses depois, outro edital foi lançado especificando que os produtos poderiam ser importados da Europa, mas que deveria conter documentos oficiais que garantissem sua não contaminação por elementos radioativos. O carregamento deveria passar por uma análise minuciosa pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) nos portos brasileiros, responsável por determinar o que seria vetado ou não.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Na prática, isso não funcionou. Uma matéria publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo revelou que vários produtos contaminados adquiridos na Irlanda já estavam sendo comercializados para o Brasil, apesar dos altos índices de radiação.
Um exame feito pelo Instituto de Radioproteção e Dosimetria (IRD), ligado à CNEN, indicou que 3 mil das 20 mil toneladas de leite em pó fornecidas ao governo por meio da empresa Ecotrading Comércio Exterior, sediada na Bahia, apresentavam um índice alarmante de césio-137. No entanto, o mesmo laudo pericial emitido pelo engenheiro químico Haroldo Lessa Peixoto de Azevedo e pelo engenheiro nuclear Luiz Fernando de Carvalho Conti, no qual constava a alta contaminação por radiação, também apontava que a carga era apropriada para consumo humano.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Estamos falando de um carregamento de leite em pó com níveis de radiação que ultrapassavam mais de mil vezes às médias obtidas pelo IRD desde 1979, se classificando também como a mais alta de diversos países do Hemisfério Norte.
Mesmo assim, em entrevista ao Jornal da Bahia, em agosto daquele ano, quando a carga já havia chegado ao porto de Santos, em São Paulo –, os especialistas alegaram que permitiriam que seus filhos consumissem o produto porque aquela quantidade de radiação "era segura".
Um mês depois, em 26 de setembro, a CNEN publicou uma resolução no Diário Oficial da União equiparando os limites de radioatividade permitidos nos alimentos importados aos padrões europeus. O órgão ainda ressaltou que o sistema vigente na Comunidade Econômica Europeia era o mais “restritivo e exigente dentre os existentes”.
Essa medida permitiu que a carga da Ecotrading ganhasse as prateleiras dos supermercados, apesar de todos os questionamentos da comunidade científica. A população, ávida pelos produtos e limitada ao que ouvia, apenas agarrou a oportunidade de consumi-lo sem hesitar. Foi por pouco, inclusive, que não foram contaminadas com carne bovina e suína transportada dos EUA e da Europa.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Em outubro daquele ano, a CNEN atestou a contaminação de 7 mil toneladas das 100 mil toneladas da proteína, cuja importação foi autorizada pelo ministro da Fazenda, Dilson Funaro, por meio da Interbras, extinta estatal de comércio exterior vinculada à Petrobras. A carga foi proibida pelo governo e permaneceu estocada em frigoríficos da Companhia Brasileira de Armazenamento (Cibrazem), no município gaúcho de Canoas, a dezoito quilômetros de Porto Alegre.
A carne radioativa permaneceu estocada por 20 anos, até que a Sola Indústrias Alimentícias, fábrica de enlatados, a recolheu em nome da Iaco Trading, que obtivera o estoque em leilão. Para disfarçar sua aparência de quase apodrecida, a carne foi transformada em charque e embutidos e exportada para o Caribe e países da África. O processo gerou cerca de US$ 1,5 milhão em receitas de exportação.
Demorou 30 anos para que o governo brasileiro admitisse que os alimentos contaminados poderiam causar sérios danos à saúde das pessoas que entrassem em contato ou os consumissem.
Não é possível rastrear o quanto a população foi afetada, apenas se chocar com seu estado de vulnerabilidade perante aos erros governamentais.