Ciência
30/12/2024 às 09:00•3 min de leituraAtualizado em 30/12/2024 às 09:00
Poucas pessoas são cientes sobre a obsessão cultural dos australianos por propriedade. Isso pode ser atribuído, em parte, à colonização britânica no final do século XVIII, quando a terra era vista como uma fonte de riqueza e estabilidade. Ao longo do tempo, essa característica se enraizou no DNA cultural do povo australiano, tornando a posse de uma propriedade um símbolo de sucesso e prosperidade para a maioria das pessoas.
Outro fator que também contribuiu foi um mercado imobiliário historicamente robusto e de valorização constante, que assim permaneceu durante décadas. Uma casa sempre foi vista como uma maneira garantida de construir riqueza ao longo da vida, e também um dos motivos pelos quais um australiano médio sofre agora com a captura do mercado por grandes investidores e magnatas que impedem que muitos tenham moradia digna ou consigam habitar alguma devido à especulação imobiliária, alugueis altíssimos e baixa tração do mercado. O que era antes a identidade nacional do australiano, agora se tornou sua vergonha.
O sonho de ter uma casa própria não só se tornou uma piada viral pela internet, programas de entretenimento e notícias pelo país, mas também acentuou um problema até então insólito: pessoas estão desenvolvendo uma obsessão por procurar imóveis na internet.
Graças aos denominados "hoomers", investidores que enxergam as casas como veículos comerciais para a criação de riqueza, em vez de um direito básico envolvendo abrigo ou um lugar para criar uma família, os jovens que aspiram por um imóvel precisam ganhar mais de US$ 340 mil (mais impostos) para comprar uma casa de preço médio com um depósito de 20%, segundo dados da Canstar and Domain.
Em alguns lugares da Austrália, como em Sydney, a quantidade de tempo e esforço necessários para economizar para fazer um depósito médio de uma casa poderia ter quase comprado uma inteira na década de 1970, antes do mercado ser capturado por esses investidores compulsivos.
Nos últimos cinco anos, o preço médio de um imóvel em Sydney aumentou 60%, para um recorde de US$ 1,6 milhão, enquanto em Melbourne subiu pouco mais de 20%, para US$ 1 milhão. Vale considerar que o salário médio anual de um australiano é de aproximadamente US$ 80 mil, e cresceu apenas 3,9% ao ano nos últimos cinco anos, enquanto só ano passado o preço médio das casas em Sydney subiu 11,5%. Não tem como acompanhar.
Diante disso, cresceu a tendência de jovens e outros adultos que não alcançaram o sonho da casa própria em navegar por sites de empresas de mercado imobiliário por horas ao dia, de domingo a domingo, em todos os horários possíveis, bisbilhotando as propriedades de estranhos, a metros ou quilômetros de distância, mas sempre irremediavelmente fora de seu alcance financeiro.
Apesar de haver um encabeçamento histórico e cultural dos australianos nisso, essa obsessão contagiou várias nacionalidades. Algumas pessoas vão além de fantasiar com a casa dos sonhos listada em alguma página do site Zillow, e embarcam no que alguns especialistas estão chamando de "realstalker" (junção das palavras real estate, referente à "imobiliária" no inglês, com stalking, que significa "perseguição").
Essas pessoas não só marcam visitas constantes em sua casa alvo, às vezes mais de uma vez por dia, como chegam perto demais da propriedade – o suficiente para importunar compradores em potencial ou afrontá-los com uma presença hostil. Tudo isso porque estão certos de que aquela casa os pertence e um dia estará em seu nome.
Sites como Realtor.com, Zillow, Trulia, Redfin, Estately, Homes.com, Street Easy e Curbed permitem que estranhos vasculhem a casa dos outros, desde as compradas até vagas e alugadas. É o que Sarah, uma entrevistada que teve seu nome escondido pelo The Guardian, faz de maneira compulsiva.
“Faço todos os dias. Eu olho casas online quando acabei de me mudar ou quando estou pensando em me mudar novamente”, disse ela. A mulher confessa que sente seu pulso acelerar só em ver as casas aparecendo na tela do seu computador. Ocasionalmente, chega a dizer para seu esposo que comprou alguma, só pela emoção.
“Mas eu não comprei. Claro que não”, responde ela.
Nos Estados Unidos, antes do "boom" do mercado imobiliário, esse prazer voyeurístico foi capturado e capitalizado pela mídia desde as shelter magazine do final do século XIX, que fazia as pessoas fantasiarem com espaços de design perfeito em mansões e outras propriedades que refletiam o futuro de uma América em expansão. Revestimentos e móveis que nunca seriam vistos na realidade por um cidadão médio americano.
Segundo uma pesquisa de 2014 da Discover Home Loans, dois terços dos compradores de casas admitiram que olhar listas online de imóveis se tornou um vício. Em julho de 2015, a Zillow tinha 141 milhões de usuários únicos ativos, no entanto, naquele mês, vendeu apenas cerca de 5,4 milhões de imóveis. No mesmo ano, as taxas de propriedade atingiram o nível mais baixo em 48 anos nos EUA, porque a Geração Z encara a casa própria como algo fora do seu alcance – mas isso não as impedem de desejar por uma.
Em um estudo feito por cientistas de Cingapura em 2015, os participantes solicitados a comparar suas aquisições com alternativas aparentemente superiores experimentaram um declínio na felicidade, independentemente do quão satisfeitas estavam. Como somos programados a enxergar a grama do vizinho como sempre a mais verde, se tornar obcecado por algo vai além de um desejo intangível, mas de uma aspiração tão grande que parece uma falha pessoal, de uma pessoa que não obteve sucesso profissional o suficiente para alcançar aquele patamar.
No final das contas, essas pessoas obcecadas por ver propriedades online apenas flertam com a fantasia de viver outras vidas.