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05/09/2024 às 12:00•3 min de leituraAtualizado em 05/09/2024 às 12:00
O uso de cocaína na Europa é geralmente associado ao século 19, quando a droga foi isolada quimicamente das folhas de coca. No entanto, uma descoberta recente está desafiando essa linha do tempo. Uma equipe de pesquisadores da Universidade de Milão encontrou evidências surpreendentes em cérebros mumificados de dois indivíduos enterrados em uma cripta do século 17.
Essas amostras revelaram a presença de diversos componentes encontrados nas folhas de coca, indicando que a planta, de onde a cocaína é derivada, estava sendo consumida na Europa dois séculos antes do que se acreditava.
As folhas de coca têm sido usadas na América do Sul há milhares de anos, tanto para fins medicinais quanto recreativos. Os conquistadores espanhóis, ao chegarem ao continente, logo tomaram conhecimento das propriedades psicoativas da planta.
Os espanhóis tentaram inicialmente suprimir o uso da coca, mas acabaram reconhecendo seu valor e a utilizaram para fortalecer seu domínio. Ainda assim, acreditava-se que a planta não havia sido disseminada na Europa até o século 19, quando químicos finalmente conseguiram isolar a cocaína em sua forma pura. A descoberta dos pesquisadores italianos, no entanto, sugere que essa narrativa pode estar incompleta.
Os dois cérebros mumificados, preservados em uma cripta ligada ao hospital Ospedale Maggiore — um dos principais hospitais italianos do séc. 17 —, mostram que a cocaína já estava presente na Europa naquela época. Isso porque os tecidos dos cérebros analisados tinham a presença dos principais alcaloides existentes na folha de coca: cocaína, benzoilecgonina (um metabólito da cocaína) e higrina.
Embora não haja registros históricos que confirmem o uso de coca no Ospedale Maggiore, a presença de higrina nos cérebros sugere que as folhas foram mastigadas ou usadas para fazer chá pouco antes da morte dos indivíduos. Essa hipótese é considerada a mais provável porque a higrina, presente nas folhas de coca, mas ausente na cocaína purificada, indica que os indivíduos consumiram a planta em sua forma natural.
É importante ressaltar que a cripta em questão é um verdadeiro tesouro arqueológico, contendo os restos mortais de cerca de 10 mil pessoas, muitas delas pacientes pobres que foram tratados no hospital. Isso levanta uma questão intrigante: como as folhas de coca, uma planta nativa da América do Sul, chegaram às mãos de pessoas comuns na Itália naquela época?
Milão, durante o século 17, estava sob controle espanhol, o que ajuda a explicar como a planta pode ter chegado à cidade. O comércio marítimo entre a América do Sul e a Europa estava em expansão, e as "plantas exóticas" do Novo Mundo, como a coca, certamente despertaram interesse.
Os marinheiros espanhóis, por meio de seus contatos com diferentes povos do nosso continente, especialmente os andinos, aprenderam sobre os diversos usos da folha de coca. Eles sabiam, por exemplo, que a planta era usada principalmente para aliviar a fome e a fadiga.
Apesar de a descoberta ser impressionante, ela também levanta mais perguntas do que respostas. Por exemplo, não se sabe ao certo se o uso da coca em Milão era medicinal ou recreativo.
É possível que os médicos do Ospedale Maggiore, conhecidos por suas práticas avançadas, tenham adotado o uso da coca para tratar alguns pacientes, já que os sul-americanos usavam tradicionalmente as folhas de coca para diversos fins medicinais, incluindo como analgésico.
Por outro lado, o fato que as folhas de coca estavam acessíveis até para os mais pobres sugere que seu uso poderia ter sido mais difundido do que se imaginava. Se isso for verdadeiro, é sinal de que a folha de coca tinha muito mais entrada no continente europeu do que os especialistas suspeitavam.
Cabe lembrar que nessa mesma cripta do Ospedale Maggiore já foram encontrados vestígios de ópio e canábis, mostrando que há muito a ser descoberto sobre os procedimentos médicos utilizados no hospital naquela época, bem como quais eram algumas das práticas da sociedade.