Artes/cultura
03/02/2020 às 14:00•4 min de leitura
Em 1650, cerca de 50 mil nativos irlandeses foram escravizados pelo ditador inglês Oliver Cromwell durante a ocupação da Irlanda na Guerra dos Três Reinos. Entre essa parcela do povo que foi enviada para uma plantação de açúcar na ilha de Barbados, estavam presos Ann Glover, o marido e a filha do casal, que foram vendidos para empregadores particulares e submetidos a um regime de servidão por contrato.
Ann poderia ser só mais uma estatística na história em meio a tantas outras, e a sua vida poderia ter ganhado um destino diferente, mas a tragédia de sua jornada se destacou.
Tudo o que há documentado a respeito da existência de Ann Glover ainda permanece apoiado em mistérios e em algumas incógnitas. A começar pela sua data de nascimento, depois pela sua árvore genealógica e até mesmo o próprio nome, uma vez que os servos eram obrigados a aceitar o nome de seus donos quando eram “contratados”. A única coisa que se pode afirmar é que ela era uma mulher genuinamente irlandesa e católica, e isso já era o suficiente para que fosse punida naquela época simplesmente por existir.
Em 1680, Ann conseguiu ser a primeira pessoa a ser dispensada das “colheitas de morte” na ilha de Barbados, sendo transportada para Boston com sua filha, Mary, para trabalhar como empregada na casa da família de John Goodwin. Enquanto isso, seu marido ficou para trás e foi executado por se recusar a renunciar à sua fé e à sua crença no catolicismo. Em alguns lugares, existem registros de que, antes de morrer, o homem confessou que sua mulher era de fato uma bruxa, mas isso, a princípio, não foi ouvido por muitas pessoas e tampouco se tornou um motivo para a sentença futura de Glover.
Ann Glover não teve nenhum dia de descanso a partir do momento em que colocou os pés na casa dos Goodwins. Ela cuidava de absolutamente tudo, alimentava-se muito pouco – normalmente de restos e cascas de frutas – e dormia menos que o mínimo aceitável por dia. A mulher ainda conseguiu sobreviver por alguns anos sem ceder à rotina servil imparável, apesar das condições deploráveis às quais era submetida. Porém, no verão de 1688, acabou sendo vítima de uma doença que não foi diagnosticada, tampouco tratada por algum médico na época.
Martha Goodwin, com apenas 13 anos de idade, a mais velha dos 5 filhos de John Goodwin, acusou a filha de Ann de ter roubado suas roupas, o que causou uma discussão ferrenha entre a mulher e a menina. Depois disso, não demorou muito para que 4 das 5 crianças, incluindo Martha, começassem a adoecer e a demonstrar sintomas esquisitos que se refletiam na maneira delas de agir.
As crianças passaram a latir umas para as outras em vez de se comunicarem pela fala. Quando choravam, emitiam ronronados no lugar do “clássico” berreiro infantil. Quando se comunicavam normalmente, reclamavam que estavam em chamas, suando e arquejando o corpo o tempo inteiro, implorando para que alguém fizesse algo para aliviar o calor.
O médico chamado pela família atestou que a causa do comportamento atípico era devido a algum feitiço lançado por uma bruxa, uma vez que o profissional não foi capaz de determinar nenhum sinal de doença. Ainda que não precisasse de mais nenhum aval, Goodwin resolveu levar o caso ao ministro puritano Cotton Mather. Este concluiu que a Colônia de Massachusetts havia sido abandonada por Deus e que Satanás havia se apossado dos filhos de John para instaurar seu fruto do mal.
De acordo com Mather, Ann Glover era uma mulher irlandesa pobre, católica e obcecada por idolatria. Isso era o suficiente para embasar a sua conclusão de que ela era uma bruxa – o que, para ele, não se opunha, de forma alguma, ao fato de ela ser católica. Na verdade, muito pelo contrário.
Só a opinião dele já foi a confirmação de que eles precisavam para encarcerar a mulher. E foi exatamente o que aconteceu. Em adição aos seus crimes e à culpabilidade em todo o processo, estava a descoberta de que Ann possuía uma coleção de estátuas parecidas com bonecos, para os quais ela admitiu orar, pois eram uma forma grosseira de representação dos santos nos quais ela acreditava. O ministro puritano, no entanto, viu essa adoração como um “namoro” com Satanás, com quem ela supostamente se encontrava diariamente em conluios, para se relacionar e tramar seus feitos.
Ann Glover foi examinada por seis médicos. Cinco deles afirmaram que ela estava em perfeito estado de consciência, descartando qualquer possibilidade de ela ser louca, o que seria um obstáculo para condená-la à morte. Em mais um teste realizado pelo Tribunal da Inquisição, aos olhos de Cotton Mather, a mulher fracassou novamente, pois apertou um laço ao redor de seu pescoço quando pediram a ela que recitasse alguma oração em inglês e ela foi incapaz, por conta de seu mínimo conhecimento da língua.
Dessa forma, ela só conseguiu recitá-la em seu próprio idioma, mas isso não foi considerado por eles – na verdade esse feito foi usado como um pretexto para incriminá-la ainda mais, porque, segundo o tribunal, ela falava na “língua das cobras”, embora o ministro Mather conhecesse seu idioma. Isso acabou sendo visto como mais uma confirmação de sua culpa.
Então, no dia 16 de novembro de 1688, Ann Glover foi declarada culpada por seus “crimes” contra a família Goodwin e, por isso, foi condenada à morte, sendo considerada pobre, católica e bruxa. O evento ocorreu em praça pública, onde as pessoas a vaiaram e atiraram tanto pedras como alimentos podres em direção ao cadafalso no qual a mulher foi colocada; em seguida, ela foi enforcada como “a última bruxa de Boston”.
No entanto, apesar do título, a derradeira história do julgamento absurdo da irlandesa foi responsável por dar início a novas condenações e execuções. O caso de bruxaria dela foi documentado no livro de Cotton Mather, que seria extremamente relevante aos obscuros eventos que aconteceriam em 1692, em Salem, influenciando-os durante esse período.
Em 1988, 300 anos depois, o Conselho da Cidade de Boston declarou que o dia 16 de novembro ficaria marcado como o “Dia da Boa Glover”, em referência à Ann. Um memorial foi erguido em homenagem ao nome dela – também como forma de condenar a injustiça causada a ela.
Glover ficou marcada como a primeira mártir católica e a única vítima da histeria coletiva de bruxaria, que recebeu esse título na Colônia da Baía de Massachusetts por ter resistido a todos os preconceitos anticatólicos que sofreu.
Em 1680, Ann conseguiu ser a primeira pessoa a ser dispensada das “colheitas de morte” na ilha de Barbados, sendo transportada para Boston com sua filha, Mary, para trabalhar como empregada na casa da família de John Goodwin. Enquanto isso, seu marido ficou para trás e foi executado por se recusar a renunciar à sua fé e à sua crença no catolicismo. Em alguns lugares, existem registros de que, antes de morrer, o homem confessou que sua mulher era de fato uma bruxa, mas isso, a princípio, não foi ouvido por muitas pessoas e tampouco se tornou um motivo para a sentença futura de Glover.