Ciência
30/07/2024 às 18:00•4 min de leituraAtualizado em 30/07/2024 às 18:00
Há anos que a Coreia do Sul vive o que podemos chamar de “voo baixo” em sua estrutura social, cada dia mais ameaçada a romper devido a alguns fatores socioeconômicos. Sendo uma das sociedades mais envelhecidas do mundo, a nação se viu obrigada a trabalhar mais para não perder seu lugar na frente de competitividade internacional, reforçando os ideais milenares que enfatizam a prosperidade, dedicação e trabalho duro que a tiraram do assombrado passado agrário e foram essenciais em sua reconstrução no pós-guerra de 1945.
O problema é que, em seu caminho para se tornar uma das economias mais promissoras do globo, a Coreia teve que enfrentar diversas consequências – ou melhor, negligenciá-las. Em média, mais de 35 pessoas tiram a própria vida por dia no país, em sua maioria pessoas que sucumbiram à pressão de serem bem sucedidas, ter posses e prosperidade econômica – valores enfatizados desde muito cedo na vida coreana.
Desde 2015 que a Coreia se depara com uma queda nos índices de natalidade, sendo que em 2020, pela primeira vez, foram registrados mais mortes do que nascimentos, o que indica que o número de habitantes encolheu. Em 2022, o país quebrou seu próprio recorde de menor taxa de fertilidade do mundo. A taxa de fecundidade caiu para 0,81 em 2021, e deve despencar para 0,68 em 2024, segundo o Statistics Korea.
Os que não abrem mão da própria vida, abrem mão de viver. Para isso, eles se retraem completamente da sociedade para a segurança das próprias casas para não terem que lidar com a expectativa social e ansiedade generalizada sobre os aspectos da vida profissional. Esse fenômeno começou no Japão em meados da década de 1990 e é chamado Hikikomori. Segundo o Instituto Coreano de Saúde e Assuntos Sociais, estima-se que 350 mil a 500 mil coreanos vivem em situação de isolamento voluntário, sem sair de suas casas por anos. Os especialistas, no entanto, acreditam que este número possa ser muito maior.
Em meio a esse caos, surgiram as denominadas "Fábricas da Felicidade", que incentivaram pais coreanos a se trancarem em celas para entender o que seus filhos estão passando.
Os jovens em todo o mundo estão lutando para fazer a transição para a idade adulta, mas o que os torna vulneráveis ao isolamento social são uma mistura de práticas culturais e expectativa social, dois fatores muito predominantes no Japão e na Coreia do Sul.
Segundo a Dra. Kim Seonga, pesquisadora associada do Instituto Coreano de Saúde e Assuntos Sociais e co-pesquisadora do estudo do governo que explora o assunto, o problema na Coreia foi impulsionado por um mercado de trabalho competitivo, altas expectativas sociais e, em alguns casos, traumas pessoais não resolvidos. Ela ainda não sabe o quão difundida é a questão para além da região asiática.
A Coreia enfrenta uma verdadeira epidemia de desemprego jovem e de empregos mal remunerados que contribuem para uma sensação de insegurança e fracasso. O país tem uma força de trabalho jovem altamente qualificada que gostaria de encontrar empregos a altura do seu nível educacional, mas não há oportunidades contínuas suficientes. Com isso, o mundo exterior e o medo de errar parecem ainda mais aterrorizantes para muitos.
Ao tentar combater o problema, o governo sul-coreano relacionou a reclusão a situação financeira dessa massa de jovens, mostrando que não sabe o que está acontecendo. As autoridades ofereceram aos jovens reclusos que atingem um certo limite de renda, um salário mensal para incentivá-los a sair de suas casas. Aqueles entre 9 e 24 anos, de famílias de baixa renda, podem receber cerca de US$ 490 como subsídio de subsistência mensal. Eles também podem solicitar uma série de serviços, como saúde, educação, aconselhamento, serviços jurídicos, atividades culturais e até mesmo procedimentos estéticos para ter uma "aparência mais aceitável".
"Eu me pergunto por que o governo conecta a reclusão a situação financeira. Nem todo jovem recluso está tendo dificuldades financeiras. Indivíduos que precisam desesperadamente de dinheiro podem ser forçados a se adaptar à sociedade. Existem muitos casos diferentes", disse o ex-recluso Park Tae-hong, então com 34 anos, em entrevista à BBC. Ele alegou que foi sustentado financeiramente pelos pais, enquanto jovem em situação de hikikomori.
Enquanto o Estado não move suas políticas públicas para tentar entender e salvar esses jovens da reclusão de maneira eficaz, organizações não governamentais (ONGs), como a Korea Youth Foundation e o Blue Whale Recovery Centre, se uniram e lançaram um programa de educação parental de 13 semanas intitulado "Fábricas da Felicidade".
A iniciativa visa equipar os pais com melhores habilidades de comunicação para se envolverem com seus filhos de forma eficaz, desconstruir comportamentos estruturais de cobrança que contribuem para a reclusão e entender em primeira mão o isolamento que seus filhos sentem. Para isso, esses pais são voluntariamente confinados em celas pequenas, onde telefones e computadores não são permitidos.
Nesses quartos minúsculos, localizados em uma instalação em Hongcheon-gund, província de Gangwon, eles têm que passar 3 dias, tendo contato com o mundo exterior apenas por meio de um passa-bandeja na porta. Em entrevista à BBC, Jin Young-hae, disse que depois da experiência tem uma compreensão mais profunda da prisão emocional que seu filho de 24 anos vive desde que decidiu se retrair da sociedade há 3 anos.
"Eu estive me perguntando o que fiz de errado. É doloroso pensar nisso", revelou a mulher de 50 anos.
Segundo ela, o filho sempre foi talentoso, e tanto ela quanto o seu marido tinham grandes esperanças em seu futuro. No entanto, a mulher observou que aos poucos o jovem foi apresentando doenças frequentes, não conseguia mais manter amizades e chegou até a desenvolver um distúrbio alimentar.
Vê-lo naquela situação, trancado em seu quarto e negligenciando até sua higiene pessoal, fez com que ela procurasse uma forma de entender melhor o que se passava em sua cabeça, mas, sobretudo, saber o que ele estava tentando dizer com aquele silêncio.
Quando a Sra. Jin foi até a Fábrica da Felicidade, ela pôde ler cartas escritas por outros jovens isolados ou ex-isolados.
"Ler essas cartas me fez perceber: 'Ah, ele está se protegendo com o silêncio porque ninguém o entende'", disse ela.
Segundo o professor Jeong Go-woon, do departamento de sociologia da Universidade Kyung Hae, a expectativa social coreana de que grandes marcos da vida devem ser alcançados em momentos definidos amplifica a ansiedade dos jovens, sobretudo em momentos de estagnação econômica e baixa na oferta de empregos, como acontece na Coreia no momento.
Além disso, a ideia de que as conquistas de um jovem são um sucesso dos pais contribui na criação de um ambiente nada saudável para as famílias, porque os pais percebem o fracasso de seus filhos como um fracasso em educá-los, levando a um sentimento de vergonha e culpa.
Na Coreia, em vez de ações, os pais geralmente expressam seu amor e sentimentos por meio de ações e papéis práticos, como financiar mensalidades trabalhando duro uma vida inteira. Ao reforçar essa cultura confucionista que enfatiza a responsabilidade, eles cortam indiretamente os laços com os filhos que não conseguem atingir suas expectativas, fazendo-os se sentirem como um "problema familiar", podendo levá-los à reclusão.
Quando questionada sobre o que diria ao filho se ele saísse do isolamento, Jin Young-hae respondeu: “Agora eu vou cuidar de você”.