9 mil milhas: o romance gay entre um brasileiro e um militar russo

13/06/2016 às 11:2310 min de leitura

Atenção: o texto a seguir é uma colaboração do jornalista Alex Bessas. As ideias transmitidas pela entrevista não representam necessariamente a opinião do Mega Curioso. De acordo com Bessas, a entrevista aconteceu em Belo Horizonte (MG) no dia 25 de janeiro de 2016.

Rússia. O país que em 2013 proibia a “propaganda homossexual”. Onde manifestações de afeto entre pessoas do mesmo sexo não são vistas com bons olhos. Lugar que vê engrossar a lista de artistas banidos ou que juraram não pisar mais no país, isso por conta de seu estilo pouco (mas pouco mesmo) tolerante. Imagine, agora, como é ser gay dentro de uma das instituições mais patriarcais e machistas deste país. Sim, estou falando sobre ser gay no Exército Russo.

Ok, sabemos que a sexualidade não é uma opção. Não dá pra escolher, como quem escolhe a camisa do dia. “Ah, hoje vou ser gay” ou “hoje vou ser hétero”. Não, não é assim que funciona.

Por outro lado, se você vem de uma família de militares, ser do Exército vem quase como uma herança. Quanto mais se você vem a uma família pobre, afinal, há boas chances de sua vida melhorar se sua carreira militar der certo. Pelo menos, é isso que vocês lerão no ping-pong logo, logo.

Bem, dado o contexto, não seria de se estranhar que existam bem mais gays na instituição do que estamos acostumados a imaginar. Mas isso já é especulação.

O certo é que um brasileiro gay desembarcou na Rússia. Teve alguns affairs, bebeu muito, quase morreu com maconha sintética. E, jura, nunca havia se apaixonado. Até que, no melhor estilo moderninho, ou seja, através de um aplicativo de relacionamentos, o latino-americano foi descobrir o primeiro amor em um dedicado militar russo.

No melhor estilo moderninho, ou seja, através de um aplicativo de relacionamentos, o latino-americano foi descobrir o primeiro amor em um dedicado militar russo.

Embora tenha até tentado, o jovemzski russo não foi lá muito receptivo e não quis falar sobre sua relação amorosa. Já seu namorado brasileiro, depois de algumas cervejas e catuabas, ao som de Novos Baianos, disse muito sobre o relacionamento deles, sobre suas principais dificuldades e sobre o ser gay na Rússia. Aliás, a definição correta é: desabafou como se estivesse no programa da Sônia Abrão.

Como você conheceu o seu russo?

Como eu conheci? Em um aplicativo de relacionamento de veado.

Como é o nome do app?

Hornet Networks.

É um app só para homossexuais?

É um aplicativo para veados.

Pra um público bem específico.

Bem veado.

Já ouviu de alguém que já se deu mal por usar esse app?

Na Rússia? Não.

Como ele funciona?

É um aplicativo que acha a pessoa a partir da sua localização. Aí você escolhe pela idade, etnia e tal. Mas você pode não escolher porra nenhuma, que foi o meu caso. Só ele veio falar comigo e a gente foi conversar.

Ele puxou papo.

Sim.

Lembra o mês?

Setembro, dia 16.

Isso foi a primeira vez que vocês conversaram.

Uhum.

Qual a estação?

Outono.

Não tem neve, mas não tem sol também.

É. Dias cinzas com folhas caindo. Você olha pra frente e quer morrer.

É uma ótima definição. Então ele foi o sol do seu outono.

Mais ou menos. A gente começou a conversar e marcamos um encontro, cujo local está tatuado no meu braço agora. Aí a gente se conheceu e tal.

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Um local aberto ou mais reservado?

Foi numa estação de metrô, duas esquinas de onde eu moro. Daí ele foi pra lá no horário do intervalo dele.

Uma dúvida: a escolha do lugar foi por comodidade, ou seja, preguiça?

Sim! Duas esquinas da minha casa, longe de onde ele mora. Mas lá tem uma estação de metrô. Então é como se ele tivesse que dar três passos e me encontrasse. Fácil pra ambos.

Dai a gente se conheceu. No primeiro dia eu não tava entendendo nem meia palavra do que ele falava.

Você fala só inglês e ele só russo.

É. Na época eu entendia muito pouco de russo. Entendia bem, bem, bem pouco. E ele falava muito rápido. Eu não consegui entender nada.

Desde o início você sacava que ele era militar?

Não, até então ele tinha me falado que estudava em uma escola militar. Mas não tinha falado que prestava serviço militar.

E ele te contou isso no primeiro encontro?

Sim. No primeiro encontro ele falou “eu acabei de sair de uma guarda e tenho outra, daqui a pouco tenho que voltar pra essa outra guarda”. Nesse dia, ele foi durante o intervalo pra comer. Isso foi dia 19 de setembro. No dia 22 de setembro a gente se encontrou e foi pra um bar, mas ele não bebe e não fuma.

Meu deus.

A gente foi pra um bar. Eu pedi cerveja e ele cappuccino. Dai a gente se beijou pela primeira vez.

E como foi?

Foi um negócio difícil de conseguir o primeiro beijo por ele ser militar. Ele tem pose de militar, 24 horas por dia. Ele fala como um militar. Ele anda como um militar. E ele é gay, mas ao mesmo tempo ele é homofóbico, saca?

Explique melhor.

Definindo: ele é um veado que não gosta de ser veado. Ele defende a própria reputação, já que a reputação de uma pessoa bem-sucedida e bem-vista na Rússia é de um cara forte, do exército e heterossexual. Esse é o tipo de pessoa ideal na Rússia. E como ele busca tanto isso pra ele, ele acha que a palavra “gay” já significa algo totalmente oposto do que é ser forte.

Eu fiquei o tempo todo convencendo ele de ir no banheiro. Ele falava que não podia ir no banheiro comigo porque as pessoas iriam ver ele saindo e que tinha outra pessoa lá. Ele dizia: “As pessoas vão achar que eu sou gay”. E ele usava essa expressão o tempo todo. “Achar que sou gay”. Dava vontade de falar: “As pessoas não tem que achar, tem quer ter certeza. Você é gay!”.

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Ele usava a palavra “gay”, assim, abertamente? As outras pessoas do bar não estranhavam?

Lá eles usam uma palavra que seria o equivalente ao nosso carinhoso “bichona”, daí fica parecendo que ele tá falando com um amigo, sabe?

Então ele não se dava bem com a própria sexualidade. Ele se relacionava com mulheres?

Uhum. Mas nunca fez sexo com nenhuma delas. Fui a primeira pessoa com quem ele fez sexo na vida. Acho que ele se escondia das mulheres atrás do uniforme militar.

Voltando ao primeiro beijo.

Quando finalmente o convenci, a gente foi pro banheiro do bar, onde rolou o primeiro beijo. No banheiro, tinha uns mictórios e uma cabine fechada com vaso. Foi dentro dessa cabine. Não era exatamente uma cabine, era um cômodo fechado. Foi lá que a gente se beijou MESMO.

No dia 23 de manhã ele queria me encontrar de novo. No dia 24 falou que me amava. A gente saía sempre nos sábados e domingos e de duas em duas semanas nas terças, porque ele tem consulta odontológica, então ele faltava os compromissos militares para me ver. Era isso.

Vocês fizeram sexo com depois de quanto tempo juntos?

Vinte e nove de setembro. Depois de dez dias que eu tinha conhecido ele.

Onde eram esses encontros?

Como estava frio, era outono, na rua fazia uns cinco graus, zero grau. Então a gente não podia ficar muito tempo fora. Ficava uma hora no máximo e começava a passar mal. Daí a gente sempre se encontrava no meu hostel. Mas tinha um porém: para entrar, ele tinha que apresentar os documentos. Ele ficava muito nervoso por isso. Se pesquisassem, iam saber que ele é militar e iam querer saber o que estaria fazendo em um hostel que hospeda muitos estrangeiros. Ele ficava muito grilado com isso. Mas era a única forma da gente se encontrar. E assim foi acontecendo.

A gente sempre se encontrava no meu hostel. Mas tinha um porém: para entrar, ele tinha que apresentar os documentos.

Essa escolha de só se encontrar no seu apê é em parte porque era conveniente para ele, que daí não precisava se expor, e em parte porque a sociedade não aceitaria presenciar o romance de vocês?

Sim. Em parte por comodidade. E também por que a gente não tinha dinheiro pra ir pra outro lugar.

Ter dinheiro pra encontrar um lugar sempre é importante né? Mas se tivessem, existem espaços onde vocês poderiam ficar de boa? Tipo, boates…

Tem. Em uma cidade onde morei tinha pelo menos três boates.

E nas boates as pessoas se pegam na frente de todo mundo?

Sim.

Tipo, equivalente ao que acontece aqui nas boates gays de Belo Horizonte?

Eu acho que lá é até mais pornográfico.

Sério?

Lá é o lugar de libertação. É o único lugar onde tu pode ser quem tu é perto de outras pessoas.

Dentro é lugar de libertação, saiu pra rua já volta ao padrão heteronormativo, né?

É. Inclusive, é lá que acontece a maioria dos encontros. Se vai sair com alguém, vai marcar lá. Até por que sempre tem o medo de marcar em outro lugar e as pessoas estranharem. Afinal, é um encontro gay!

Mas a boate é abertamente gay? Tipo, todo mundo sabe?

Eu acho que sim. A boate não tem muita divulgação, saca? Mas o público gay vai indicando. Vai um falando pro outro, “é lá que você pode ser quem tu é”. Em uma das boates tem dois símbolos genéticos de masculino entrelaçados na porta, que dá pra uma rua cheia de bares. Não sei se eles já tiveram problema por isso, mas está lá. E existe uma seleção pra entrar nesses lugares também. Tipo, um skinhead maluco não entra. Uma vez um amigo meu, paquistanês, foi barrado em uma dessas boates.

Saquei. Então sem dinheiro, sem opções?

Sim. Aqui no Brasil, quando a gente não tem dinheiro, a gente faz o quê? Vai pra casa de alguém ou vai pra uma praça conversar, andar.

Como eu vou falar pra um conhecido que vou pra casa dele com outro alguém com quem estou ficando e que é do mesmo sexo que eu? Ou seja: sem possibilidade. Praça: sem possibilidade. Qualquer ambiente aberto, até mesmo pelo frio, sem possibilidade. Enfim, sem dinheiro, como faz?

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Por que não dava pra ir na casa de alguém? Do lado dele ninguém sabia do romance de vocês?

Não. Ele nunca falou com nenhum amigo nem com a família. Ele não tem ninguém para conversar sobre isso.

Dos seus amigos russos que são gays, algum deles já abriu o jogo pra amigos ou família?

Não. Não conheci nenhum que fosse assumido.

Só entre vocês, né?

Sim, entre nós.

Você já se abriu pra algum amigo russo?

Eu nunca me abri pra eles. Só alguns sabem. Os que eu tenho no Facebook sabem. Uma amiga sabe. Nem precisei contar, no primeiro dia ela já sacou. Um outro amigo, que inclusive é homofóbico, sabe. Eu contei pra ele.

E como foi a reação?

Eu contei pra ele. Daí ele foi e falou assim: “Tu não tentando nada comigo ou com meus amigos tá de boa, mas se tentar eu mato”.

Tu não tentando nada comigo ou com meus amigos tá de boa, mas se tentar eu mato

Nossa…

Mas no outro dia foi tudo normal e ele fingiu que nada tinha acontecido. Um outro, eu conversei com ele e contei pela internet. Ele ficou curioso e quis saber mais sobre. Ele é hétero, tem namorada, mas ficou curioso e aceitou tranquilamente.

Isso é bizarro. Existem gays na Rússia, mas ninguém fala sobre isso? Tipo uma espiral maluca do silêncio?

Lá eles nem tocam no assunto gay. Não existe esse assunto. Eles brincam sim com a palavra, igual a gente brinca aqui. Tipo, “ô, veado”. Mas é uma gíria vazia de significado.

Uma curiosidade: eu nunca me escondi ou tentei fingir que eu era alguma coisa que eu não era só para agradá-los, pra eles pensarem que eu não sou veado. Mas eles nunca conseguiram identificar. Inclusive, quando eu contei pra esse amigo russo que eu sou veado, antes de mais nada ele ficou assustado e surpreso. Falava, “Hã? O que você disse? Não entendi”.

Eles não conseguem identificar um cara que é gay justamente porque não existe nenhuma discussão sobre isso. O veado que vai sofrer lá é o que usa salto e tal. O ser veado lá não pode. Ser um veado “hétero” pode.

Como foi namorar um militar russo?

Ótimo entre nós. Mas horrível pelo medo dele. Medo de perder tudo o que conquistou até hoje. Na Rússia é assim: se você mora numa cidade pequena, é comum que o sonho seja de se tornar um militar ou mudar pra Moscou ou San Petersburg.

Você estava explicando a parte boa e ruim do namoro.

Era horrível por causa do medo dele. A gente se encontrava e ele ficava o tempo todo com medo, paranoico. Com medo de alguém ver a gente. Ficava olhando pra ver se tinha câmera ao redor. Tinha muito medo, até pela carreira dele. Tudo estava em jogo.

Ele é de uma família de militares?

Sim, o pai é general.

Isso me lembrou uma coisa. O exército é um espaço bem machista. Nos Estados Unidos mesmo pensar em militares abertamente gays é coisa bem recente, né? Foi em 2010 que o Obama revogou uma lei que proibia que os militares se assumissem homossexuais. Você encara que isso é transitório na Rússia também?

Na Rússia? Não existe nem a possibilidade de uma lei que abrande os direitos da comunidade gay tramitar. Muito menos no exército.

Estando lá, eu percebi que eles tem um horror a gays, já que são um povo que sempre está pensando em guerra e que eles precisam ser muito fortes. Cara, nas cidades pequenas você vê mulher carregando bacia com as compras do mês na cabeça. É isso que interessa, e, na Rússia, ser gay é ser fraco.

Se você é gay, então você não é competente para entrar no exército. Já cheguei a ouvir que os deficientes são inúteis, não prestam para construir uma sociedade forte.

Ser gay no Brasil versus ser gay na Rússia.

Cara, ser gay no Brasil é você não ter tanto medo de andar na rua e ser apedrejado. Na Rússia é você nem poder fazer isso e não poder nem encostar na pessoa que está do seu lado.

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E como é ser um brasileiro na Rússia?

Era engraçado que eles nunca desconfiavam que eu era brasileiro. Lá tem um estereótipo de brasileiros. Dois jogadores de futebol daqui jogam ou jogaram na Rússia, o Wagner Love e o Hulk. Quando eles pensam na imagem do brasileiro, pensam que todo mundo parece com eles. E eu não me pareço nem um pouco com eles. Então, quando contava que era do Brasil, eles curtiam. Bebi muito de graça por ser brasileiro.

No Brasil você já passou por alguma situação de agressão, física ou moral, por conta de sua orientação afetiva?

Sim. Uma vez conheci um cara, um pouco famoso até. Aí chegou um sujeito com uma pedra e ficou ameaçando. Mas não chegou a acontecer nada demais. Fora isso, já escutei alguns insultos gratuitos.

Vocês estão juntos há mais de seis meses, né? Como você vê a sua relação com ele a longo prazo? Acha que em algum momento seu namorado vai se encher o saco e falar “É isso mesmo, bora enfrentar o mundo”?

Ele vai ser um refém eterno.

E se ele viesse pro Brasil?

Ele nunca viria para o Brasil.

Por quê?

Ele é nacionalista, patriota.

Mas como seria a reação dele se, hipoteticamente, ele viesse?

Ele ia se sentir bem, mas não me daria a mão na rua. Ele já me falou isso. Disse assim: “Como que é a situação no Brasil?”. Aí eu expliquei pra ele. “Então, cara, lá a gente pode andar de mão dada”. E ele: “Eu nunca vou andar de mãos dadas contigo”.

Poxa...

Ah, mas espera aí. Esse “nunca vou andar de mão dada contigo” não é que ele não me ame. É porque não quer passar por essa situação, por esse pensamento de que precisa ser forte, e, se ele é gay, ele é fraco. Ele não quer nem pensar na possibilidade de ser fraco.

Você voltaria para lá?

Sim. Eu gosto muito de lá. Mesmo contrariando muitas coisas que me são caras, como o direito dos homossexuais. Mas mesmo assim eu nunca sofri nada lá, talvez porque eles não conseguem identificar. E também porque a vida normal que eu levo lá eu posso considerar um pouco melhor que a que eu levo aqui. Também por causa dos amigos que fiz lá. E por causa dele, que é o motivo que me levou a conversar contigo hoje.

***

O Mega Curioso conversou por telefone com o entrevistado, que confirmou as informações da matéria. Ele viajou à Rússia em 2014 e permaneceu lá até o fim de 2015. A identidade do entrevistado e de seu namorado será mantida em sigilo por questão de segurança.

Fonte

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