O Bem-Amado: uma novela de 1973 que continua atual

06/03/2021 às 08:005 min de leitura

Se você acompanha este belíssimo site internético chamado MegaCurioso, você já deve ter lido algum dos especiais com curiosidades das novelas que fizemos no ano passado:

O Bem-Amado foi ao ar no antigo horário das 22h da Rede Globo — reservado para produções mais "diferentonas" —, entre 24 de janeiro e 9 de outubro de 1973. A obra foi escrita pelo gênio Dias Gomes, um dramaturgo vindo do teatro, responsável por peças clássicas como O Pagador de Promessas. 

Recentemente, em fevereiro de 2021, os 178 capítulos da novela foram disponibilizados na íntegra no Globoplay, o serviço de streaming da Globo — parte do projeto de resgate do acervo da emissora, que disponibiliza uma novela antiga a cada duas semanas. 

O logotipo da novela já mostrava um morto: enredo central de O Bem-Amado envolve a inauguração de um cemitério (Fonte: Teledramaturgia)O logotipo da novela já mostrava um morto: enredo central de O Bem-Amado envolve a inauguração de um cemitério (Fonte: Teledramaturgia)

Quem é "O Bem-Amado"?

Isso não é explícito em nenhum momento, mas podemos entender que o personagem que dá título à novela é o coronel Odorico Paraguaçu, interpretado de forma magistral pelo saudoso ator Paulo Gracindo. Quando a história começa, ele é candidato a prefeito da pequena cidade litorânea de Sucupira, na Bahia. 

Um rico dono de terras — por isso chamado de "coronel" —, fabricante de azeite de dendê, cachaça e outras coisas que o deixam rico, ele tem o apoio das irmãs Cajazeiras, membros de outra família poderosa do local. Doroteia, Dulcineia e Judiceia são solteiras e Odorico tem casos as três, sem que uma saiba da outra. 

Na oposição contra Odorico, fica a família Medrado, chefiada pela matriarca Donana, o dentista Lulu Gouveia (que pouco aparece) e o jornalista Neco Pedreira. 

Os moradores, de modo geral, simpatizam com Odorico, já que ele é uma figura bem populista. Seus discursos verborrágicos, cheios de palavras inventadas e frases que vão de nada para lugar nenhum, são uma ótima sátira aos políticos de ontem e hoje. O ódio entre os Medrado e os Paraguaçu/Cajazeiras me remeteu à polarização entre direita e esquerda que vemos na política atual, em diversos momentos da novela.

O personagem-título é Odorico Paraguaçu, que se elege prefeito da cidadezinha de Sucupira (Fonte: Memória Globo)O personagem-título é Odorico Paraguaçu, que se elege prefeito da cidadezinha de Sucupira (Fonte: Memória Globo)

Odorico tem o apoio das três irmãs Cajazeiras, solteironas com quem ele tem casos, sem uma saber da outra (Fonte: Observatório da TV)Odorico tem o apoio das três irmãs Cajazeiras, solteironas com quem ele tem casos, sem uma saber da outra (Fonte: Observatório da TV)

Mas seria Odorico um vilão?

Uma das genialidades do texto de Dias Gomes em O Bem-Amado é que ele não busca soluções simples. Seria fácil fazer de Odorico Paraguaçu um político maldoso, que não pensa no bem do povo e só aparece em cena com cara de mau. Mas o personagem é carismático, nos faz rir em uma infinidade de cenas e demonstra ter sentimentos quando se trata de sua família — em especial nos embates com a filha moderna, Thelma.

A questão é que ele é um malandro, que pode até pensar no povo, mas pensa antes no próprio bem. A história toda gira em torno da promessa de Odorico de construir um cemitério em Sucupira, para que "os mortos não precisem mais carregar sua defuntice para ser enterrado em terras estrangeiras". O outro candidato, Lulu Gouveia, promete saúde e educação. Odorico ganha e trata de colocar seu plano em prática. 

O problema é que ninguém morre mais em Sucupira! Daí que surge boa parte das situações absurdas da novela: Odorico manda trazer um doente de outra cidade, mas ele fica bom; há um farmacêutico com ideações suicidas que sempre é salvo no último minuto; há tiroteios e crimes... Mas nenhum morto para inaugurar o cemitério. 

É uma coisa meio macabra... Porém, é tão absurdo que chega a ser engraçado. Outra coisa engraçada é que Odorico se diz um defensor da moral e dos bons costumes, assim como suas apoiadoras Cajazeiras. Mas ele tem casos escondidos com as três irmãs e, quando uma delas engravida, ele engana seu secretário Dirceu para assumir o filho que é dele. Lembra alguns políticos que vemos hoje em dia?

É um humor bastante ácido, com crítica social — mas, uma vez que você entra no clima de Sucupira, você acaba se divertindo com a experiência de assistir à novela. 

O Dr. Juarez é o médico do "posto de higiene" e se envolve com a filha do coronel, Telma (Fonte: Memoria Globo)O Dr. Juarez é o médico do "posto de higiene" e se envolve com a filha do coronel, Telma (Fonte: Memoria Globo)

Donana Medrado é inimiga de Odorico e assume o posto de delegada depois que seu marido fica paraplégico (Fonte: Memória Globo)Donana Medrado é inimiga de Odorico e assume o posto de delegada depois que seu marido fica paraplégico (Fonte: Memória Globo)

Odorico, a epidemia e as vacinas

Uma das tentativas de Odorico de inaugurar o bendito cemitério é contratando um matador de aluguel, Zeca Diabo, que marcou a carreira de Lima Duarte. Entretanto nem isso funciona, porque Zeca está se regenerando e não quer mais matar, por conta da sua devoção em "Padim Ciço". É ou não é muito absurdo?

Aí que vem a epidemia, que fez muita gente associar a novela ao que estamos vivendo em 2021. O tifo começa a se espalhar pela população de Sucupira e o médico do "posto de higiene" — era assim que se chamava um posto de saúde em 1973 — manda trazer vacinas. Mas Odorico precisa que alguém morra para inaugurar o cemitério, lembram? Então ele manda interceptar o carregamento de vacinas. 

Essa sequência inspirou a propaganda do Globoplay para promover a novela. Este redator que vos escreve ainda está no capítulo 18 da novela, então Zeca Diabo nem apareceu em cena, quanto mais o plot das vacinas — sei que estou falando pelas pesquisas que fiz e pelo tal anúncio na TV. Mas estou curiosíssimo para chegar nessa parte e ver no que dará a epidemia de tifo em Sucupira.

Chiquinha do Parto, esposa de Zelão das Asas, é enfermeira e trabalha com o Dr. Juarez para controlar a epidemia de tifo (Fonte: Memória Globo)Chiquinha do Parto, esposa de Zelão das Asas, é enfermeira e trabalha com o Dr. Juarez para controlar a epidemia de tifo (Fonte: Memória Globo)

A primeira novela "em cores" do Brasil

O Bem-Amado é de 1973, quase meio século atrás. Por mais que nós assistamos a filmes ou escute músicas antigas, a ideia de ver uma novela produzida há tanto tempo me soa divertida: como era a produção da época?; o que mudou para as novelas atuais? Então, para terminar esse especial, passaremos por algumas curiosidades que esse humilde redator reparou nos 18 capítulos a que assistiu. 

  • As imagens: O Bem-Amado foi a primeira novela colorida do país, então a Globo não sabia como lidar com as novas câmeras. Nos primeiros capítulos, as imagens têm cores tão fortes que quase doem o olho. Depois do décimo, por aí, o negócio melhora... Pelo que diz a lenda, o chefão da rede mandou trocar todos os figurinos e cenários por tons pastéis. 
  • As vinhetas: Quem é fã de novela gosta de assistir às aberturas, saber como eram as vinhetas de cada época... Em O Bem-Amado temos um locutor que fala com uma voz grave "Estamos apresentando... O Bem-Amaaaaado...". Quase dá medo! As vinhetas de "Voltamos a apresentar" ainda não existiam — as cenas simplesmente voltam do nada. 

Os cenários são simples e as imagens dos primeiros capítulos tem cores berrantes — é a primeira novela em cores do Brasil (Fonte: Globoplay)Os cenários são simples e as imagens dos primeiros capítulos tem cores berrantes — é a primeira novela em cores do Brasil (Fonte: Globoplay)

  • As cenas do próximo capítulo: No final de cada episódio, era lido um texto (com a mesma voz estranha) sobre algumas cenas do próximo: "Só fala quem sabe. Não vale promessa. Pague para ver. A vida é um jogo, um quebra-cabeça… O Bem-Amado!". Spoilers na própria novela?
  • A produção: Tudo era bem menos sofisticado do que nas novelas de hoje em dia, com cenários muito mais simples. Mas o pior são os chromakeys nas cenas dos personagens Neco e Thelma que deveriam ser na praia. Dá pra ver que eles estão em um estúdio! Dá para ver o corte do chromakey ao redor da atriz! 
  • Os sotaques: Sucupira fica na Bahia, mas quase todos os personagens falam como bons cariocas. Nem aquele sotaque caricato das novelas regionalistas dos anos 90 existe: é carioquês mesmo! Mas com o tempo, a gente deixa de reparar...

Este redator se deu ao trabalho de achar as cenas no Globoplay para printar: olha esse chromakey gritando! (Fonte: Globoplay)Este redator se deu ao trabalho de achar as cenas no Globoplay para printar: olha esse chromakey gritando! (Fonte: Globoplay)

Por fim, há alguns diálogos que soam muito machistas: algumas cenas em que Anita e Thelma mencionam possíveis tapas de Neco nelas. O que é irônico, considerando que Dias Gomes era um grande progressista e tanto Anita, como Thelma, são personagens bem libertas e modernas. Coisas da época... Ainda bem que o mundo mudou!

Mesmo assim, na maioria dos momentos, o texto de O Bem-Amado é bastante atual para uma novela de quase cinquenta anos atrás. Os personagens são bem construídos e é muito divertido entrar no clima dos absurdos da história. Você se vê rindo com os discursos de Odorico e com seu afã de inaugurar o cemitério. Além disso, a trilha sonora foi inteira composta sob encomenda por Toquinho e Vinícius: só música boa.

Também vale destacar que os episódios são rápidos: 20 a 25 minutos, pulando a abertura e as cenas do próximo capítulo. Então dá para maratonar O Bem-Amado como se fosse uma comédia norte-americana da Netflix. É o que este redator que vos escreve está fazendo e eu recomendo que vocês também façam. 

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