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02/12/2021 às 11:00•3 min de leitura
Consolidado como um dos maiores ritmos tradicionais no Brasil e inspiração para inúmeros gêneros musicais como MPB, pagode, axé e outros, o samba, que faz 105 anos de história nesta quinta-feira (02), é uma referência aos festejos, à alegria e à democracia social, tendo como base um movimento que começou na periferia carioca e se espalhou por todo o Brasil. Apesar disso, o estilo é marcado por um passado de perseguição e preconceito, em uma época em que os compositores eram tratados como “vagabundos” e relacionados a organizações criminosas.
No início do século XX, como reflexo dos resquícios deixados pela Lei Áurea — promulgada em 1888 e principal responsável pelo fim da escravidão no Brasil — autoridades nacionais estabeleceram decretos que criminalizavam o desemprego. Isso quer dizer que, caso os policiais interpretassem que um cidadão maior de 14 anos estava ofendendo a “moral e os bons costumes”, o indivíduo poderia pegar uma pena de até 30 dias de prisão.
(Fonte: BNDigital/Reprodução)
A ordem, que ficou conhecida como Lei dos Vadios e Capoeiragem, é datada do segundo Código Penal brasileiro e foi aprovada para inibir a atividade de capoeiristas, visto que a prática teve origens com a etnia banto — grupo de escravizados africanos que encontrou, na dança, uma forma de luta e resistência. Dessa forma, a norma foi um mecanismo de combate envolvendo questões raciais e sociais na tentativa de privar a ascensão de manifestações da população negra no País.
“Já no final do século XIX, buscou-se acabar com os cortiços que existiam na cidade, em especial os do centro, pois já se havia percebido que não era esse o tipo de habitação que condizia com o novo tipo de organização social que o Rio de Janeiro deveria apresentar”, escreveram os pesquisadores Rafaela Cardoso Bezerra Cunha e Ricardo Augusto de Araújo Teixeira, da Universidade Federal de Lavras (UFLA), esclarecendo as tentativas de “embranquecimento” e repressão às camadas pobres.
João da Baiana. (Fonte: Casa do Choro/Reprodução)
Além de ocorrerem em periferias e locais onde aconteciam festejos de capoeira, as rodas de samba também possuem raízes na cultura preta, e isso foi motivo suficiente para que artistas fossem perseguidos e colocados em páginas de jornais como criminosos. Segundo o historiador Lira Neto, um cidadão poderia ser preso pelo simples fato de estar portando um instrumento musical, caso fosse entendido, pelos policiais, como uma subversão à lei.
Um dos casos mais escandalosos foi relatado pelo sambista João da Baiana (1887-1974), que teve seu pandeiro apreendido pela polícia, em meados de 1920, como prova da suposta “vadiagem” do artista. Sem seu instrumento, João acabou não comparecendo a uma roda de samba prevista para ocorrer na mesma noite da abordagem, mas foi surpreendentemente convocado para o gabinete do então senador José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915), fã declarado do ritmo musical.
(Fonte: Agência Brasil/Reprodução)
“A perseguição no início do século passada é tão racista quanto o sistema de justiça criminal brasileiro, cujo critério determinante é a posição de classe do autor, ao lado da cor de pele e outros indicadores sociais negativos, tais como pobreza, desemprego e falta de moradia”, disse Reinaldo Santos de Almeida, professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Mesmo com a forte repressão e com os sambistas cada vez mais escondidos em suas casas, as músicas do gênero sobreviveram por décadas e passaram a relatar casos de racismo e preconceito em suas letras, de forma a denunciar um sistema agressivo que operava entre as classes mais pobres. Com o tempo, elas foram adaptadas para marchinhas de Carnaval e blocos de rua, que começaram a se intensificar por volta de 1940, mesmo com a Lei dos Vadios e Capoeiragem tendo sofrido uma renovação em 1941.
(Fonte: Folhapress/Reprodução)
Como o Carnaval nunca havia sido proibido no País, artistas de todos os locais encontraram um espaço comum para compor e cantar, sempre resgatando a violência simbólica, física e estrutural que incidiu sobre eles. Porém, a regulação ainda era forte na metade do século XIX e o poder público insistia em criar artifícios “fora da lei”, baseando-se em chantagem através da injeção de dinheiro e em uma fiscalização rigorosa.
Por décadas, as escolas de samba eram privilégios das pessoas ricas, que se aproveitavam das marchinhas de samba e da perseguição para reivindicar autoria das músicas. A grande mudança ocorreu apenas em 1967, quando o então prefeito de São Paulo, José Vicente Faria Lima, decidiu “disciplinar” a festa e editou um decreto que confinava os desfiles na avenida São João, no centro da cidade. O Sambódromo do Anhembi, local dedicado às escolas de samba, foi inaugurado apenas em 1991, pelas mãos da ex-prefeita paulista Luiza Erundina.