Ciência
31/12/2021 às 11:00•3 min de leitura
Até a década de 1930, nenhum estrangeiro sabia da existência da tribo Fore, residente no arquipélago de Papua-Nova Guiné. Esse grupo era um povo isolado com características culturais bem específicas, como o ritual de comer o cérebro de parentes mortos para demonstrar seu luto.
Esse hábito, considerado horrendo em boa parte das culturas, levou a uma consequência nefasta: o kuru é uma doença neurodegenerativa fatal, também chamada de "morte risonha", que causa a perda do controle das emoções e leva os doentes a ataques de riso não intencionais. As vítimas costumam morrer em até 1 ano após apresentarem os sintomas.
Até 1950, o kuru matava 2% da população da tribo Fore todos os anos. E demorou muito tempo para que os pesquisadores e os próprios fore descobrissem o que estava causando as mortes.
A Papua-Nova Guiné é um território conhecido por abrigar centenas de tribos indígenas que ficaram intocadas durante milhares de anos. Os exploradores portugueses e espanhóis chegaram à região apenas no século XVI e só foram até a parte costeira, o que fez que muitas tribos permanecessem isoladas pelo menos até o século XX.
Essas tribos desenvolveram práticas culturais consideradas exóticas por muita gente, como o canibalismo. É importante lembrar que o ato não é visto como algo condenável e maligno, e sim como parte de um ritual de honraria. Então, cada vez que morria um parente, o corpo era cozido e comido por aqueles que o amavam.
(Fonte: Daily Advent Nigeria)
Os membros da tribo acreditavam que isso "acalmava" o espírito daquele corpo, além de honrar o falecido. A lógica seria: se o corpo fosse enterrado, seria comido por vermes, então era muito melhor e digno que ele fosse comido por pessoas queridas.
A carne do cadáver era oferecida primeiro às mulheres do grupo, porque se acreditava que o corpo feminino poderia lidar melhor com espíritos "perigosos". As mulheres se serviam do corpo (todos os órgãos eram comidos, com exceção da vesícula biliar) e ofereciam pedacinhos às crianças pequenas. Por isso, os principais afetados pelo kuru eram as mulheres e seus filhos.
A grande questão é que ninguém sabia o que estava causando as cerca de 200 mortes por ano entre o povo fore. Foi apenas nos anos 1960 que os pesquisadores começaram a entender o que estava acontecendo.
(Fonte: Medicine Anthropology Theory)
O kuru começou a ser conhecido a partir de um palpite da antropóloga Shirley Lindenbaum (1932-), que estudava a tribo. Foi ela que se deu conta de que a doença mortal que dizimava o grupo poderia não ser genética, já que atingia mulheres e crianças que não pertenciam à mesma família.
Em outro momento, o neurologista neozelandês R.W. Hornbook adicionou uma nova questão ao enigma: "O que as mulheres e as crianças fore estão fazendo que os homens adultos não estão?". A resposta logo veio à tona: "Eles praticavam canibalismo de parentes em funerais".
Mesmo que a causa do kuru tivesse sido desvendada, ainda havia dúvidas a serem esclarecidas. Se vários povos de Papua-Nova Guiné mantinham práticas de canibalismo, por que só os fore adoeciam? A questão começou a ser solucionada a partir de outra doença, quando um membro do grupo desenvolveu o mal de Creutzfeldt-Jakob, conhecida como a forma humana da "doença da vaca louca", cujos sintomas são bastante similares aos do kuru.
Descobriu-se, então, que o kuru era causado por príons, que são proteínas anormais que formam lesões no cérebro e causam danos profundos ao sistema nervoso da pessoa doente. Quando os fore consumiam o cérebro do parente morto, os príons presentes nessa região se espalhavam em quem tivesse comido, causando a doença.
Depois dessas descobertas científicas, a taxa de morte dos fore por kuru diminuiu aos poucos, tendo a última sido registrada em 2009. Hoje, a tribo conta com cerca de 20 mil pessoas, que permanecem saudáveis em Papua-Nova Guiné.