Como a máfia da indústria farmacêutica fatura às custas da dor

18/07/2023 às 13:005 min de leitura

A sociedade não vive em equilíbrio — nem todos os países possuem os mesmos fatores e condições de envelhecimento, estilo de vida, dieta adequada, níveis de sedentarismo, estresse e outras condições socioeconômicas que contribuem para o surgimento de doenças crônicas ou a longo prazo. Em contrapartida, é indiscutível que a indústria farmacêutica tem uma participação ativa na maneira como deseja que nossa saúde esteja, afinal ela só existe e fatura com base nisso – e não é pouco.

O número de adultos nos Estados Unidos que tomam pelo menos um medicamento prescrito por dia é de 70%, mostrando um aumento de 14 pontos percentuais em relação aos dados de 2019, conforme um levantamento feito pelo CivicScience. Aumentou em seis pontos percentuais, de 18% para 24%, a quantidade de pessoas que toma quatro ou mais medicamentos por dia.

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

O Statista apontou que o setor farmacêutico não só experimentou um crescimento significativo nas últimas duas décadas, quando alcançou o valor de US$ 1,48 trilhão em 2022. Paralelamente, o CivicScience apontou que 24% dos adultos norte-americanos deixaram de tomar medicamentos prescritos devido ao seu custo inflacionário.

É um fato que a humanidade não teria chegado até aqui sem medicamentos, mas talvez não vá muito longe pelo tanto que os consome – ou deixa de consumir –, e é manipulada por uma indústria que representa 2% da economia mundial.

A tendência dos boticários

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

Os medicamentos sempre estiveram presentes na dieta básica da humanidade. Por volta de 3000 a.C., a civilização suméria, no sul da Mesopotâmia, já possuía uma ampla gama de conhecimento sobre plantas medicinais e suas propriedades curativas. As pessoas usavam, por exemplo, casca de salgueiro como medicamento tradicional para alívio da dor. Apesar de sua aplicação ter sido defendida pelos pais da medicina, Hipócrates e Plínio, o Velho, demorou até meados do século XVIII para que os cientistas refinassem a casca do salgueiro no composto medicinal chamado salicina.

No início dos anos 1900, a gigante farmacêutica Bayer AG transformou a salicina em ácido acetilsalicílico e a vendeu sob o nome “aspirina”. Se este é considerado o medicamento mais usado no mundo, alvo de 700 a 1 mil estudos clínicos por ano, isso é culpa não só da evolução da medicina, mas também do poder da indústria farmacêutica.

E esse poder e influência têm raízes sólidas na Idade Média. Quando o setor farmacêutico surgiu, na forma dos boticários pela Europa, essa função não era só um ramo mercadológico, mas uma profissão "normal". Os boticários eram químicos que misturavam e vendiam seus medicamentos para os médicos, cirurgiões e clientes que entravam nos estabelecimentos em busca de um alívio rápido para a dor.

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

Enquanto a América não possuía uma estrutura bem organizada na produção e distribuição de medicamentos, a Europa percebeu que, organizando uma instituição sob um corpo profissional, impediria que qualquer pessoa entrasse para o ramo e estabelecesse legitimidade na prática de produzir e vender medicamentos.

Fundada em 1617, a Sociedade Respeitável de Boticários se tornou o órgão regulador e de treinamento para aquela indústria emergente. A organização foi responsável por estabelecer um laboratório para a fabricação e venda dos próprios compostos, bem como inspecionar remédios vendidos em instalações autônomas por toda Londres, a fim de monitorar e prevenir a adulteração de produtos farmacêuticos pela cidade.

É seguro dizer que a indústria farmacêutica começou a ser cimentada como a conhecemos no momento em que os boticários passaram a diagnosticar as pessoas em vez de apenas vender medicamentos. 

Assim sendo, no início do século XIX, o processo varejista dos medicamentos foi absorvido por empresários e profissionais treinados que viram a oportunidade em preencher a lacuna deixada pelos boticários. No entanto, eles atuaram apenas nas classes média e baixa, vendendo medicamentos a preços reduzidos, uma vez que os ricos já se beneficiavam dos médicos e boticários.

Uma mão lava a outra

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

O alemão George Merck, cuja família estabeleceu a indústria farmacêutica mais antiga do mundo, acreditava que as empresas do ramo nunca poderiam esquecer que a medicina é feita para o povo, não voltada aos lucros. E isso já era 1950, quando o pós-guerra gerou imenso esforço para a produção massiva e sofisticação dos medicamentos depois que o desenvolvimento da penicilina salvou a vida de milhares de soldados.

A máquina da guerra, que desde o século XIX impulsionou essa indústria, também encorajou a pesquisa em larga escala, desenvolvendo desde novos analgésicos até medicamentos contra o devastador tifo. Previsivelmente, conforme enriquecia e se expandia, os conflitos éticos para ganhar dinheiro com a venda dos medicamentos se tornaram cada vez mais aparentes – e não estamos falando apenas sobre os testes em grupos minoritários, mas também em priorizar o lucro sobre a vida.

A gigante farmacêutica AstraZeneca faturou bilhões de dólares em 2010 quando o cardiologista Janathan Halperin e uma bancada de consultores da Food and Drug Administration (FDA) votaram pela aprovação do medicamento Brilinta para tratar problemas cardíacos. Halperin alegou que não havia conflito de interesse em sua decisão, mas descobriram que ele não só foi beneficiado com mais de US$ 200 mil pela AstraZeneca, como também ganhou viagens, consultorias, dados confidenciais de pesquisas e o privilégio de se sentar em comitês patrocinados pela empresa.

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No exposé “O custo da captura: como a indústria farmacêutica corrompeu os formuladores de políticas e prejudicou os pacientes”, feito por Julie Margetta Morgan e Devin Duffy, é mencionada uma investigação de 2018 da Science Magazine que descobriu que esse tipo de conduta é um padrão entre pessoas influentes como Halperin. Dos 107 conselheiros médicos avaliados pela revista, 40 receberam valores acima de US$ 10 mil de fabricantes de remédios para votar a favor de alguma aprovação.

No Direito, essa conduta é chamada “captura corporativa”, quando a indústria privada usa de sua influência política para assumir controle do aparato de tomada de decisão do Estado, como agências reguladoras, entidades de aplicação da lei e legislaturas.

“Isso mostra quanto poder as empresas farmacêuticas exercem sobre nossos formuladores de políticas e, na verdade, sobre nossa democracia. Não podemos garantir medicamentos acessíveis a todos os americanos até que consertemos essa dinâmica”, disse Margetta Morgan.

Uma indústria escusa

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

Poucas pessoas estão cientes que esse padrão de corrupção compromete demais a economia de um país. O aumento dos custos dos medicamentos prescritos força os governos locais a fazerem cortes orçamentários em áreas fundamentais, como educação, infraestrutura e outros serviços sociais, para poder investir mais em assistência médica e programas de saúde.

As empresas farmacêuticas estão envolvidas em uma teia de sonegação de bilhões de dólares em impostos que poderiam ser usados para investir na saúde. Enquanto isso, elas abusam do seu poder e influência para manter os custos dos medicamentos altíssimos, prejudicando a vida de pessoas, como Tobeka Daki. 

Mãe solteira que vivia em Mdantsane, na África do Sul, Daki foi diagnosticada com câncer de mama em 2013 e, além de quimioterapia, precisava de um medicamento chamado trastuzumabe para melhorar suas chances de vida. Era impossível para ela adquirir o remédio porque nem sua renda familiar ou plano de saúde podiam arcar com ele.

Na África do Sul, o uso por um ano do trastuzumabe custa US$ 38 mil, cerca de cinco vezes a renda familiar média. Em um dos países mais economicamente desiguais do mundo, 84% de sua população depende do setor público de saúde e os altos custos de medicamentos impedem que eles cheguem a esses lugares e salvem a vida de pessoas como Tobeka Daki. Como consequência, ela morreu três anos após seu diagnóstico, como apurou a Oxfam, uma das mais reconhecidas organizações humanitárias do mundo.

(Fonte: GettyImages/Reprodução)(Fonte: GettyImages/Reprodução)

E como se isso já não fosse suficiente, a corrupção das empresas farmacêuticas também coloca em risco a nossa saúde quando adianta ou manipula pesquisas médicas com resultados duvidosos apenas para lucrar sobre a escalação de problemas de saúde que afligem a sociedade. 

Em um dos capítulos do livro Bad Pharma: how pharmaceutical companies mislead doctors and harm patients (algo como "Farmácia má: como as empresas farmacêuticas enganam os médicos e prejudicam os pacientes" em tradução livre para o português), Ben Goldacre expôs que as revistas médicas falham tanto quanto as empresas farmacêuticas ao julgarem relatórios que não mostram análises completas de ensaios clínicos de medicamentos contra placebos.

O antidepressivo reboxetina foi um exemplo citado por Goldacre. Entre os sete ensaios do medicamento contra o placebo, apenas um, o eficaz, foi formalmente publicado. A empresa Pfizer não divulgou que nos outros seis testes não divulgados o medicamento teve uma resposta menos eficaz e resultou em piores efeitos colaterais.

Assim como Fiona Godlee, antiga editora do The British Medical Journal, outras vozes apoiam a necessidade de todos os dados de testes sobre medicamentos estarem disponíveis publicamente, não apenas resumos compilados e processados. 

Afinal, o que a sociedade enfrenta com a indústria farmacêutica é a história mais antiga de todos os tempos, um eterno Frankenstein de Mary Shelley, quando a criatura excede seu criador em tamanha autonomia que se torna imparável, sentada em seu trono de privilégios em simplesmente ser indispensável.

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