Ciência
02/03/2021 às 15:00•4 min de leitura
A mãe de Vladimir Demikhov sempre soube que o filho estava destinado a algo maior. Nascido em 18 de julho de 1916, ele era um dos três filhos do casal de camponeses Demikhov Peter Yakovlevich e Domnika Alexandrovna, que morava no vilarejo de Yarizenskaia, na cidade de Voronezh na época da União Soviética.
Depois que o pai morreu, Demikhov lutou com a mãe para conseguir se sustentar e frequentar a escola, apesar da situação financeira muito difícil. Em 1934, ele saiu de casa para estudar Biologia na Universidade Estatal de Moscou; 3 anos mais tarde, projetou seu primeiro dispositivo mecânico de assistência cardíaca que poderia assumir a função de um coração por cerca de 5 horas. Na época, ele já usava animais, principalmente cachorros, para realizar experimentações.
Vladimir Demikhov. (Fonte: Europe PMC/Reprodução)
A princípio, o ato de operar os animais vivos não foi o que incomodou a comunidade científica, e sim a natureza da prática de implantação de um coração artificial. Demikhov não se importou com as críticas, pois era jovem, estava cheio de ideias e queria causar uma verdadeira revolução.
Em 1940, ele se formou, porém continuou na instituição trabalhando como assistente no Departamento de Fisiologia. Lá, ele transplantou um coração para a região inguinal (perto da virilha) de um cachorro e percebeu que o órgão só poderia funcionar ativamente se fosse transplantado para o tórax.
(Fonte: Famous People/Reprodução)
Com o início da Segunda Guerra Mundial, as pesquisas do jovem cientista foram interrompidas porque ele precisou atuar como patologista em um hospital de campanha. Foi o primeiro contato de Demikhov com os horrores da guerra, atendendo principalmente aos soldados que chegavam mutilados. Como atentar contra a própria vida era considerado crime de guerra, Demikhov foi recrutado também como perito forense pelo exército soviético, para analisar a taxa de óbitos nos acampamentos. Ele teve que mentir para salvar a vida de soldados que estavam destruídos psicologicamente, colocando a própria vida em risco.
Esses hospitais só serviram para aumentar a vontade de Demikhov de tentar entender como órgãos danificados poderiam ser substituídos e como criar opções artificiais.
(Fonte: Vice/Reprodução)
No início de 1946, ele conseguiu realizar transplantes intratorácicos de um coração e um par de pulmões de maneira bem-sucedida em um cão, registrando o primeiro procedimento dessa natureza em um mamífero. Em 30 de junho do mesmo ano, Demikhov assistiu a um dos cachorros resistir por quase 10 horas com coração e pulmões transplantados. Depois, ele realizou um transplante de fígado e rim em cães e gatos, e alguns deles sobreviveram por 1 mês. Em um experimento com desvio de artérias coronárias, 4 cães submetidos sobreviveram por quase 2 anos.
Finalmente, o cientista se sentiu confiante o suficiente para evoluir para um teste mais ousado, desafiador e bizarro: enxertar a cabeça de um cachorro no pescoço de outro, criando um cão de duas cabeças.
(Fonte: Mentes Curiosas/Reprodução)
Em 1954, o comitê soviético de revisão do Ministério da Saúde local já havia determinado que o tipo de trabalho desempenhado por Demikhov era antiético, e ele recebeu ordens para que interrompesse seus projetos de pesquisa imediatamente. Contudo, o chefe da pasta era o cirurgião responsável pelas Forças Armadas soviéticas, então permitiu que o cientista continuasse os estudos.
As duas cobaias escolhidas por Demikhov foram um pastor alemão de rua, que o cientista chamou de Brodyaga (vagabundo, em russo) e receberia em seu pescoço a cabeça da cadela Shavka, de 9 anos.
(Fonte: South China Morning Post/Reprodução)
O horrível procedimento começou com uma incisão na base do pescoço de Brodyaga para expor a veia jugular, a aorta e um segmento da coluna vertebral. Demikhov levou 40 minutos para fazer dois furos na parte óssea de uma das vértebras e introduzir dois fios de plástico, um vermelho e um branco, em cada buraco.
(Fonte: All That's Interesting/Reprodução)
Shavka foi sedada e teve seu corpo amputado das patas dianteiras para baixo, mantendo o coração e os pulmões ativos até segundos antes de ter os vasos sanguíneos principais da cabeça conectados ao pescoço de Brodyaga.
A cirurgia durou 3 hora e meia devido à experiência da equipe e à condução rápida e minuciosa de Demikhov. Quando o cachorro de duas cabeças recuperou a consciência, a cabeça intrusa acordou e bocejou normalmente. A princípio, Brodyaga tentou se desvencilhar do que havia em seu pescoço, mas depois acabou se acostumando.
(Fonte: Pinterest/Reprodução)
Shavka manteve sua personalidade; embora não tivesse mais o próprio corpo, era agitada e brincalhona. Ela rosnou, latiu e até tentou lamber a pata. Já Brodyaga parecia entediado com a agitação.
Ambas as cabeças ouviam, enxergavam, cheiravam e engoliam, embora a cabeça transplantada não estivesse conectada ao estômago de Brodyaga. Tudo o que ela bebia saía por um tubo de plástico e caía no chão ou espumava na junção com o pescoço do pastor alemão.
O cachorro de duas cabeças de Demikhov reagiu bem a todos os estímulos aos quais foi submetido, porém sobreviveu por apenas 3 semanas, com ambas as cabeças morrendo em função de um edema. Ao longo da década de 1960, o médico foi capaz de criar cerca de 20 cães de duas cabeças, mas todos morreram em poucos dias; apenas um conseguiu viver por 29 dias, apesar das condições médicas.
(Fonte: Reddit/Reprodução)
Os experimentos de Demikhov entraram para a história da medicina experimental como uma das mais controversas do século XX, causando uma "onda" de indignação na comunidade médica e científica. O homem foi duramente criticado, chamado de açougueiro e até de charlatão.
Ainda assim, a relevância de Demikhov se tornou enorme com o passar dos anos, principalmente por ser corajoso o suficiente para explorar o desconhecido, ainda que por meios polêmicos e antiéticos. Um paradoxo sobre o cientista e sua contemporaneidade foi criado, em que alguns consideravam sua pesquisa cirúrgica algo inovador e outros a viam apenas como uma fantasia vulgar.