Artes/cultura
25/05/2022 às 04:00•3 min de leitura
A medicina do século XIX foi marcada pela necessidade voraz de avanços. Após ter colhido muito do que se sabia sobre anatomia humana a partir da dissecação de cadáveres roubados que fizeram indústria na História, a ciência precisava desesperadamente compreender o que se passava em corpos vivos.
A cirurgia suja e rudimentar da época não era o suficiente para que os médicos pudessem explorar tudo o que o corpo humano tinha a oferecer, portanto, quando surgiu a oportunidade naquele 6 de junho de 1822, acompanhada de a colaboração médico-paciente mais bizarra da História, foi o momento em que a medicina pôde dar um imenso avanço.
E tudo começou em um acidente com arma de fogo, o tipo de ferimento considerado uma sentença de morte naquele tempo.
Alexis St. Martin. (Fonte: Brazilian Times/Reprodução)
Foi quando o viajante canadense Alexis St. Martin foi acidentalmente baleado com um tiro de mosquete em seu estômago enquanto estava parado no posto de comércio de peles na Ilha Mackinac, no Michigan (EUA), que seu caminho se cruzou com o do Dr. William Beaumont, um cirurgião de um posto militar próximo — e um futuro condutor de experimentos em humanos.
Os 20 anos de St. Martin não o pouparam das chances de morte devido à gravidade de sua lesão, inclusive foi o que Beaumont deixou claro para ele o tempo todo, visto que a bala arrancou fragmentos dos músculos e quebrou algumas de suas costelas no caminho.
Dr. William Beaumont. (Fonte: Mackinacparks/Reprodução)
Nos 17 dias que se seguiram, o médico percebeu que tudo o que St. Martin comia simplesmente vazava dele, tanto que a maneira que encontrou de mantê-lo alimentado foi por enemas nutritivos que administrava regularmente. As bordas do estômago até se curaram e se uniram às bordas da pele externada, mantendo o estômago funcional, o que permitiu que a comida não vazasse mais, e o órgão retornasse às funções naturais. No entanto, o buraco nunca foi fechado pelo médico.
Apesar disso, Beaumont convenceu St. Martin que ele não duraria muito e, com isso, viu uma oportunidade científica revolucionária: estudar a digestão. Em 1800, o processo não era bem compreendido porque não havia como ver o interior de um corpo, a menos que estivesse morto. O desespero para descobrir como a digestão funcionava foi tão grande que um médico tentou colocar comida em sacos com barbante, engoli-los e depois puxá-los pela garganta por várias vezes.
(Fonte: Connecticut History/Reprodução)
Assim que o viajante ficou um pouco melhor, ele se tornou uma espécie de lacaio do médico, realizando tarefas domésticas pelo dia, e servindo como cobaia científica à noite.
Durante o processo, Beaumont fez o homem experimentar vários tipos de comida, e chegou a provar o ácido estomacal que saía pela fístula na barriga do homem. Foi assim que descobriu que o estômago não tinha sabor ácido até que estivesse trabalhando para digerir alimentos. Ele também removeu pedaços do revestimento do órgão para analisá-los.
Após anos em cativeiro, Beaumont permitiu que St. Martin retornasse ao Canadá, e foi quando a relação dos dois se deteriorou. Em um hospital, o viajante percebeu que estava bem e que sua condição não o mataria mais, fazendo ele se distanciar do médico.
(Fonte: Pinterest/Reprodução)
Mas em 1831, ele voltou a se encontrar com Beaumont, ficando em sua casa por mais um ano antes de se casar e ter 6 filhos. Ele chegou a se oferecer para ser cobaia mais uma vez depois disso, porém ordenou uma quantidade exorbitante de dinheiro, que o médico se negou a pagar.
Depois disso, eles nunca mais se viram, e St. Martin passou o resto de sua vida fugindo dos médicos que o perseguiam para tentar estudar o buraco deixado por Beaumont em seu corpo.
O problema foi tão grande — e o misticismo ao redor disso maior ainda — que, quando St. Martin morreu, aos 78 anos, em 24 de junho de 1880, a família adiou seu sepultamento até que seu corpo estivesse completamente apodrecido, temendo que os médicos o desenterrassem para tentar ressuscitá-lo ou o submeter a experimentos bizarros.