Ciência
03/09/2018 às 14:58•4 min de leitura
O dia 2 de setembro de 2018 vai ficar marcado na história do Brasil como a data em que o Museu Nacional do Rio de Janeiro foi completamente destruído por um incêndio de grandes proporções. As chamas destruíram praticamente tudo dos nada menos que 20 milhões de itens armazenados no museu, dos quais mais de 3 mil estavam expostos para o público.
Fundado em 1818, o Museu Real ainda não ficava no local onde esteve até seu fim e na maior parte de sua existência
O Museu Nacional era a instituição científica mais antiga do Brasil, tendo completado 200 anos há pouco, em 2018 mesmo. Inicialmente chamado de Museu Real, foi fundado pelo rei Dom João VI em 1818 e tinha aquele jeitão clássico dos primeiros museus de Ciências Naturais, reunindo de tudo um pouco. Nele era possível encontrar materiais de botânica, zoologia, animais empalhados, coleções de moedas, artefatos históricos e obras de arte das mais diversas.
Porém, o Museu Real ainda não ficava no local onde esteve até seu fim e na maior parte de sua existência. Ele esteve instalado no Campo de Santana, Rio de Janeiro, também conhecido hoje como Praça da República e local onde o Marechal Deodoro da Fonseca realizou a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889.
Museu Real quando ainda se encontrava no Campo de Santana, em gravura de Bertichem
O Museu Nacional se beneficiou muito da presença da família real portuguesa no Rio de Janeiro. Tendo fugido de Lisboa em 1808 temendo a invasão do exército napoleônico, a corte portuguesa veio toda para o Brasil, o que tirou o nosso país da categoria de colônia e fez dele Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves em 1815, para que a família real continuasse governando o país europeu a partir do próprio Rio de Janeiro.
Foi lá [no Palácio de São Cristóvão] onde se instalou o então príncipe-regente Dom João assim que chegou ao Brasil, em 1808
A ida dos nobres portugueses para a Cidade Maravilhosa permitiu que se reunissem nela muitos naturalistas e pesquisadores europeus, como Karl Friedrich von Martius, Johann Baptist von Spix, Auguste de Saint-Hilaire e Georg Heinrich von Langsdorff, que contribuíram demais com materiais para o acervo do Museu Nacional, que se tornou um dos maiores de todas as Américas.
Enquanto isso, a menos de 5 quilômetros do Museu Nacional no Campo de Santana, o Palácio de São Cristóvão, localizado na Quinta da Boa Vista, abrigava a família imperial brasileira. Foi lá onde se instalou o então príncipe-regente Dom João assim que chegou ao Brasil, em 1808, tendo ganhado o terreno e a residência do comerciante português Elias Antônio Lopes, que se gabava por possuir a “melhor casa do Rio de Janeiro”.
Quinta da Boa Vista em torno de 1853 a 1840, com o Palácio de São Cristóvão, em gravura de Karl Robert Barton von Planitz
A família real portuguesa assentou-se lá de muito bom grado e só saiu com o fim da monarquia no Brasil, quando aconteceu a Proclamação da República em 1889. Porém, nesses 81 anos de ocupação real e imperial, o Palácio (ou Paço) de São Cristóvão foi palco de eventos históricos de muita importância, como a assinatura do documento que libertava oficialmente o Brasil de Portugal em 1822, o nascimento de Dona Maria II, futura rainha de Portugal, de Dom Pedro II, futuro imperador do Brasil e, posteriormente, da Princesa Isabel.
Essa cerimônia era bastante peculiar e levava as pessoas para fazer reclamações ou agradecimentos ao monarca e, em seguida, beijar-lhe a mão em sinal de respeito
Era lá também que ficava um dos tronos reais e onde acontecia a famigerada cerimônia do beija-mãos, iniciada quando Dom João VI tornou-se rei. O costume português que acabou chegando ao Brasil era apreciado pelo monarca, que todas as noites – menos em domingos e dias santos – dispunha-se na sala do trono do Palácio e recebia em média 150 pessoas (nobres e cidadãos comuns).
Essa cerimônia – que acontecia no Paço Imperial, hoje Praça XV, também no Rio – era bastante peculiar e levava as pessoas para fazer reclamações ou agradecimentos ao monarca e, em seguida, beijar-lhe a mão em sinal de respeito. O ritual foi mantido por Dom Pedro I e Dom Pedro II, mas ninguém o praticou com tanto gosto quanto Dom João VI, que – segundo testemunhas oculares diziam – ouvia a todos com grande atenção, inclusive lembrando feições, nomes e histórias pessoais de quem participava do acontecimento.
Cerimônia do beija-mão na corte de Dom João VI, em gravura de Jean-Baptiste Debret
Quando a monarquia foi abolida para dar espaço às ideias mais modernas de república, o Palácio de São Cristóvão foi a sede onde trabalhou a Assembleia Nacional Constituinte responsável pela formulação da Constituição Brasileira de 1891, a segunda a vigorar no nosso país. Após esse acontecimento, o casarão ficou desocupado e sem função. Por ser um dos símbolos monárquicos que a República gostaria de evitar nessa nova era, ele não foi utilizado em nenhuma função administrativa do governo.
Assim, Ladislau Neto, então diretor do Museu Nacional que ainda ficava no Campo de Santana, conseguiu que fosse aprovada a transferência da instituição para o Palácio de São Cristóvão, muito mais espaçoso e com estrutura melhor. E lá o Museu Nacional ficou até aproximadamente as 19h30 do dia 2 de setembro de 2018, 200 anos após a sua criação, quando foi completamente destruído por um incêndio.
Antiga foto do Museu Nacional já no Palácio de São Cristóvão
Após a virada do século, em 1909, os jardins da Quinta da Boa Vista receberam uma reforma completa ordenada pelo então presidente Nilo Peçanha. Em 1946, o Museu Nacional passou a ser administrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que na época ainda se chamava Universidade do Brasil. De lá em diante, suas instalações e peças auxiliaram muito os estudantes de diversas áreas.
Apesar de algumas peças importantes do acervo terem sido recuperadas — como o crânio de Luzia, o mais antigo já encontrado nas Américas —, muitas coisas de importância inestimável foram perdidas no fogo. O Mega Curioso fez uma lista com as peças mais relevantes que foram destruídas no incêndio do Museu Nacional.
Os problemas estruturais das instalações do Museu Nacional eram antigos
O descaso com o museu não é novidade para ninguém que tivesse um mínimo de conhecimento sobre como o governo mantinha as instalações. Luiz Fernando Dias Duarte, vice-diretor do Museu Nacional, denunciou o esquecimento da instituição por parte do Estado e contou como os cortes no orçamento fizeram com que a verba do museu diminuísse cada vez mais nos últimos anos: em 2018, até junho, apenas R$ 71 mil haviam sido transferidos para a instituição.
Os problemas estruturais das instalações do Museu Nacional eram antigos, e é impressionante ver uma notícia veiculada pela Agência Brasil, do dia 3 de novembro de 2004 relatando como Wagner Victer, então secretário estadual de energia, indústria naval e petróleo, constatou uma série de irregularidades que colocariam o museu em altíssimo risco de um incêndio, exatamente como aconteceu em 2 de setembro de 2018, quase 14 anos depois.
Bombeiros tentam conter o incêndio no Museu Nacional
Se vale como simbologia, nesse mesmo dia 2 de setembro, porém de 1822, Dona Maria Leopoldina – esposa de Dom Pedro I e, na ocasião, nomeada chefe do Conselho de Estado e Princesa Regente Interina do Brasil pelo marido – assinou o decreto de Independência que declarava o Brasil separado de Portugal.
Cinco dias depois, no dia 7, Dom Pedro I – que apaziguava uma crise política em São Paulo – recebeu de Leopoldina uma carta relatando o feito e pedindo a ele para declarar oficialmente a independência, o que aconteceu às margens do Rio Ipiranga, como bem sabemos.
Ironicamente, nesse mesmo dia, 196 anos depois, ruía nas chamas do descaso governamental o casarão que abrigou os portugueses que fizeram do Brasil um país independente e que, posteriormente, acolheu uma grande parte extremamente importante de toda a cultura e a História da nossa sociedade.