Artes/cultura
14/01/2021 às 15:00•4 min de leitura
Durante o período de guerras, especificamente entre 1930 e 1940, o nacionalismo extremo do Japão fez com que a nação se apoiasse em uma pilha de aproximadamente 20 milhões de cadáveres, entre civis e inimigos – o que nunca houve distinção para o Exército Imperial Japonês.
Obcecados por uma sede de dominação sanguinária, as tropas japonesas realizaram massacres generalizados do modo mais bárbaro o possível, com desmembramentos, fogueiras de corpos, decapitação, varais de enforcamento e sepultamento de pessoas vivas. Em meio a isso, nos territórios ocupados, foi desempenhado experimentação humana de armas biológicas e químicas, além de trabalho escravo e a normalização de uma rede de estupros em massa.
O soldado japonês aprendeu a ser assim desde o período feudal do país até 1868, que foi quando a Restauração Meiji (uma ditadura militar hereditária) implementou de vez os valores de que o Japão se tornaria o centro do mundo, uma “super-raça”. Sem sensibilidade alguma, “purificados” de qualquer espírito de individualismo e moldados ideologicamente a partir de um sistema escolar que pregava que a vida deles pertencia ao imperador, o pensamento do soldado japonês foi todo construído com base no bushido, visando lealdade extrema e bravura suicida, livre de qualquer tipo de compaixão.
No livro The Rising Sun, o autor John Toland deixa claro que a brutalidade era um acontecimento diário para o soldado, era tudo o que ele conhecia. Muitos acreditam que essa era a fórmula para que monstros fossem criados.
A filipina Narcisa Claveria, por exemplo, tinha apenas 12 anos quando testemunhou essa brutalidade estimulada no soldado. Enquanto toneladas de combatentes de exércitos inimigos e civis morriam pelas mãos das tropas japonesas, ela e milhares de mulheres foram submetidas a uma finalidade diferente – embora não significasse que elas não morreriam no final.
Em 13 de dezembro de 1937, quando os soldados do Império do Sol Nascente invadiram Nanquim, na China, houve um dos mais sangrentos massacres de civis da história. Além de todos os horrores cometidos, o pior deles foi o estupro em massa que os militares cometeram em mais de 80 mil mulheres, jovens e crianças chinesas.
Foi pensando na imagem do Japão pelo mundo, que já havia se horrorizado com o que aconteceu em Nanquim, que o imperador Hirohito decidiu expandir as “estações de conforto” (os bordéis militares) ao longo dos territórios ocupados pelo exército japonês, em uma tentativa de evitar que seus homens “perdessem o controle” novamente.
Desde 1932, o governo do Japão em conluio com o Exército Imperial desenvolveu uma rede de casas de prostituição para seus soldados e militares poderem “aliviar” a tensão que havia antes e depois do campo de batalha, além de ser também uma forma de “recompensa” por seus sacrifícios diários.
A princípio, essas “mulheres de conforto” eram prostitutas japonesas que se ofereciam para prestar o serviço, porém, com a expansão, os militares se depararam com a falta de voluntárias, portanto foram buscá-las nas populações locais. Foi assim que eles começaram a sequestrar, coagir ou enganar mulheres para que entrassem em um verdadeiro programa de servidão sexual.
A maioria das mulheres que não foram sequestradas no meio da rua, foram enganadas ao serem convocadas pelos militares japoneses para trabalharem como operárias ou enfermeiras. Só quando chegavam às “casas de conforto” descobriam a derradeira verdade.
Até o final da Segunda Guerra, estima-se que mais de 360 mil mulheres, em sua maioria coreanas, foram estupradas e mantidas contra vontade em mais de 2 mil “postos de conforto” que existiram. Ainda assim esse número é incerto, visto que muitos materiais nos quais constavam os crimes de guerra e endereçavam a responsabilidade de tudo foram destruídos a mando do governo japonês.
Uma vez nos bordéis, as mulheres eram usadas pelos captores como verdadeiros “banheiros públicos”, sendo também forçadas a doarem sangue para o tratamento de soldados feridos. As coreanas eram as mais desvalorizadas, portanto eram designadas aos escalões mais baixos, enquanto as japonesas e europeias serviam os oficiais. O motivo de 80% das “mulheres de conforto” serem coreanas se devia pelo fato de elas serem quase sempre virgens, visto que o sexo antes do casamento era um ato condenado.
Sem se alimentarem direito, vivendo de restos e em um ambiente insalubre, as mulheres eram espancadas violentamente dia e noite, chegando a ser estupradas de 30 a 40 vezes ao dia. “Eu não tinha descanso”, relatou Maria Rosa Henson, uma filipina prostituída em 1943. “Eles faziam sexo comigo a cada minuto”, ela afirmou. A violência constante causava dores agonizantes, gravidez, doenças, mortes, infertilidade a longo prazo e também uma destruição psicológica irreparável.
“Eu nasci uma mulher, mas nunca vivi como uma. Sinto-me mal quando me aproximo de um homem. Não apenas os homens japoneses, mas todos os homens, até mesmo o meu próprio marido que me salvou do bordel”, confessou a coreana Kim Hak-sun, em uma entrevista em 1991. “Eu tremo sempre que vejo uma bandeira japonesa. Por que eu sinto vergonha? Eu não deveria sentir vergonha”, ela afirmou.
Foi só no início da década de 1990, com o surgimento de centenas de ações judiciais contra o Japão, que as mulheres sobreviventes puderam contar ao mundo a sua triste história. Por anos, elas sofreram por sentir vergonha, dor e estigmas sociais.
Houve muitos pedidos de desculpa e acordos financeiros milionários da nação japonesa, entre esses o financiamento de cerca de US$ 5 milhões em projetos médicos e de bem-estar para melhorar casas de repouso e moradias das “mulheres de conforto” sobreviventes nas Filipinas, na Coreia do Sul e em Taiwan.
Estátuas em homenagem a essas mulheres foram erguidas pelo mundo todo, de Seul a Berlim e São Francisco. Só nos Estados Unidos foram instaladas pelo menos 9 delas, como uma forma de lembrete das atrocidades da guerra. Afinal, com o fim da ocupação japonesa em 1945, a potência norte-americana teve uma parcela de culpa por permitir que as “estações de conforto” ainda funcionassem, só que servindo os homens americanos. Em 1946, foi o oficial Douglas McArthur quem encerrou as atividades do sistema ilegal.
De acordo com o Tribunal Global da ONU sobre Violações dos Direitos Humanos das Mulheres, estima-se que 90% das “mulheres de conforto” morreram no final da Segunda Guerra Mundial. É por isso que, para sobreviventes como Narcisa Claveria, o mundo não pode se esquecer do que aconteceu. Até hoje, aos 89 anos, ela ainda participa de comícios que visam contar o que aconteceu com as “mulheres de conforto”, lutando por reconhecimento e justiça.
Em conversa com a National Public Radio, ela declarou: “Depois de todo o sofrimento que eu passei, tenho que me defender até obter a justiça que mereço”.