Artes/cultura
16/04/2021 às 12:00•3 min de leitura
A primeira vacina oficialmente registrada no mundo foi a da varíola, criada em 1796 pelo inglês Edward Jenner. O feito colocou o nome do médico no panteão da área da saúde como o responsável por encontrar uma forma de gerar uma resistência natural no corpo contra a infecção por doenças comuns na época.
Só que ele não foi o único — e nem o primeiro — a testar com sucesso o método de imunização com base na aplicação de uma fração de um vírus em uma pessoa que nunca havia ficado doente.
Entretanto, o trabalho idealizado por Mary Wortley Montagu décadas antes acabou deixado de lado nas páginas da história.
Mary Pierrepont nasceu em Londres no ano de 1689, já em uma família tradicional da aristocracia britânica. Só que ela não tinha apenas tarefas comuns a uma "lady" da época: a sua verdadeira paixão eram os livros, com a jovem driblando as governantas da mansão para visitar a biblioteca nos momentos de lazer.
Aos 16 anos, ela já escrevia poesias e contos, além de ter aprendido latim de forma autodidata — a educação avançada não era a prioridade da família da jovem, mas sim um bom casamento.
Mary Pierrepont.
O matrimônio veio quando ela completou 23 anos. O marido, Edward Wortley Montagu, também vinha de família tradicional, o que fez o casal frequentar com naturalidade a corte do rei George I.
Em 1716, Edward foi apontado embaixador britânico no então império Otomano, o que fez o casal se mudar para Constantinopla.
O período foi marcado por uma série de epidemias de uma mesma doença: a varíola, que vitimou o irmão de Mary aos 20 anos e a deixou com algumas sequelas, incluindo marcas no rosto.
Só que, ao chegar na atual Turquia, ela notou que as mulheres da região não possuíam as tais marcas no rosto. Ao investigar, ela descobriu que uma das práticas comuns da medicina local envolvia uma forma de imunização ainda bastante rudimentar, mas que levaria os mesmos princípios biológicos das futuras vacinas.
Pintura de Lady Mary com trajes da cultura otomana.
O procedimento era um enxerto de fragmentos de pele infectadas no corpo de uma pessoa ainda saudável por meio de uma agulha. Efeitos colaterais eram registrados, como manchas no corpo e um pouco de dor ao longo dos primeiros dias, mas os pacientes não registravam a doença em sua forma mais grave.
O método de inoculação já era relativamente conhecido entre especialistas britânicos, mas apenas a partir de relatos distantes ou testemunhos de quem viajou para regiões como a China, onde ele também era realizado a partir da inalação em pó.
A aristocrata ficou tão impressionada com o método que resolveu inocular seu próprio filho com a amostra da varíola, em 1718 — possivelmente o primeiro britânico imunizado em toda a história. O procedimento foi bem sucedido e, de volta ao Reino Unido, ela passou a defender a prática na região.
A inoculação da varíola, em desenho já feito com o procedimento de Jenner.
Em abril de 1721, Mary resolveu imunizar também a própria filha, de cinco anos, para ajudar na divulgação da imunização na Inglaterra.
O cirurgião Charles Maitland, amigo da família, aceitou o convite para ajudar na aplicação. Ele virou um dos maiores defensores da prática, realizando diversos procedimentos parecidos nos anos seguintes.
Entretanto, por mais que as aplicações registradas tenham sido um sucesso, o procedimento não foi bem recebido por toda a comunidade médica britânica. Muitos pesquisadores consideravam o método uma prática trazida por "mulheres ignorantes" que encontraram a solução em uma região de "pessoas iletradas". De forma quase simbólica, a mistura do sangue britânico com doenças também não era bem vista. Até mesmo alguns parentes acharam a ação irresponsável.
Um memorial em sua homenagem na catedral de Lichfield, em Staffordshire.
Mary escreveu textos em defesa do processo, mas nem todos foram publicados durante a sua vida. Em alguns, ela até critica a "importação" do processo para a Inglaterra com alterações: os médicos ocidentais eram menos cuidadosos na preparação do paciente, realizavam cortes mais brutos e pouco ligavam para o pós-operatório.
Uma das compilações póstumas.
Além da contribuição indireta e pouco reconhecida na área da saúde, ela produziu uma série de cartas que posteriormente foram publicadas e mostram uma visão interessante a respeito da vida das mulheres em Constantinopla — alegando que a cultura menos conservadora da região tornava as mulheres locais mais livres que as aristocratas britânicas.
Ela morreu em 1762, aos 73 anos, depois de uma longa batalha contra um câncer. Neste período, Edward Jenner ainda era um adolescente que, anos mais tarde, desenvolveria um método mais avançado de inoculação baseado na manipulação da varíola bovina.