Estilo de vida
03/11/2021 às 08:00•3 min de leitura
Na noite do último domingo (31), comemoramos “com força” o Dia das Bruxas. Depois de muito tempo de isolamento social, muita gente aproveitou o relaxamento das medidas sanitárias para tirar o atraso. Foram litros e litros de cerveja consumidos rapidamente, e as festas se estenderam até altas horas em diversos lugares do mundo.
Coincidentemente, as roupas que vestimos hoje para comemorar o Halloween eram uma espécie de “uniforme” usado pela maioria das mulheres cervejeiras, as primeiras a vender o precioso líquido nos mercados do século XVI na Europa. Segundo a historiadora e sommelier de cerveja, Jane Peyton, autora de três livros sobre a bebida, as fabricantes e vendedoras de cerveja usavam chapéus pontudos, tinham grandes caldeirões e deixavam uma vassoura na porta.
Esses chapéus pontudos, explica a autora, eram úteis para que essas mulheres fossem reconhecidas facilmente pelos clientes. Nos caldeirões, o mosto (malte triturado, feito de cevada, trigo ou centeio) ficava fervendo e a vassoura servia para marcar aquele local como sendo um ponto de venda. Isso sem contar com um gato mal-encarado, que ficava do lado delas, para manter os ratos longe dos grãos.
(Fonte: Wellcome Images/Wikimedia Commons/Reprodução)
Quem leu a descrição das mulheres cervejeiras europeias do século XVI não pôde deixar de perceber que a aparência delas é exatamente o que temos hoje como o estereótipo de uma bruxa, tanto dos contos de fadas como aquelas que eram queimadas pela Santa Inquisição a partir do século XV e até o XIX. Mas a história, na verdade, começa muito antes.
Para início de conversa, é preciso deixar claro que a pesquisa da inglesa Jane Peyton mostra que a cerveja é uma invenção e criação totalmente feminina. Segundo a historiadora, há cerca de sete mil anos, na Mesopotâmia e na Suméria, as mulheres detinham os conhecimentos necessários para produzir cerveja. Elas tinham o monopólio das tabernas e duas deusas da bebida: Síris e Kubaba.
Já era de conhecimento geral que as mulheres das tribos primordiais eram responsáveis pela tarefa de coletar grãos e preparar os alimentos. Mas a grande descoberta de Peyton foi que a cerveja, nos seus primórdios, era considerada um alimento, e até mesmo uma forma barata de consumir e conservar os grãos. Dessa forma, a fermentação se tornou uma tarefa tipicamente “doméstica”.
Por se tratar de um alimento muito requisitado pelas pessoas, não demorou para que muitas mulheres casadas fizessem parcerias com seus maridos para que estes criassem seu negócio de cerveja. Mas, em uma época de muitas doenças e guerras, muitas viúvas e mulheres solteiras resolveram investir pessoalmente nessa habilidade doméstica herdada das mães.
Se voltássemos no tempo até aquela cena do mercado que descrevemos anteriormente, diríamos que aquelas mulheres eram bruxas, mas aquela roupa era característica das cervejeiras. Foi naquela época (1517) que a Reforma Protestante começou, e com ela a propagação de normas de gênero mais rígidas que, entre outras coisas, condenava a bruxaria.
Cansados da concorrência desleal das mulheres no mercado cervejeiro, que detinham uma expertise muito maior, os homens viram nos novos preceitos religiosos uma oportunidade de ouro para se livrar de algumas dessas concorrentes. Para isso, foram até as autoridades eclesiásticas e passaram a acusar algumas cervejeiras de serem bruxas, usarem seus caldeirões para preparar poções mágicas e até mesmo de voarem em suas vassouras.
(Fonte: Corbis/Getty Images/Reprodução)
O resto da história nós já sabemos: com o passar dos anos, ficou cada vez mais perigoso para as mulheres fazerem cerveja ou tentar vendê-la, pois corriam o risco de serem identificadas como bruxas. Na época, a misoginia de raízes bíblicas imperava, e uma identificação como bruxa podia render uma condenação ao ostracismo, prisão ou morte na fogueira.
É de se supor que alguns daqueles homens não acreditavam que as cervejeiras fossem mesmo bruxas. Uns faziam a acusação para lucrar, enquanto outros achavam que lugar de mulher era dentro de casa e que não deveriam gastar seu tempo fazendo cerveja. Afinal, toda trabalheira para preparar o malte, limpar o chão e carregar feixes de centeio afastavam as cervejeiras do seu destino “natural”: cuidar da casa e dos filhos.
Como se viu, as cervejeiras foram "transformadas" em bruxas não apenas por interesses econômicos como também por motivos religiosos. Para se ter uma ideia, do ano 900 até 1400 a Igreja Católica recusou-se a reconhecer a existência de bruxas. Mas, a partir da criação da Igreja Protestante, as duas instituições passaram a competir por seguidores, e com certeza os julgamentos de bruxas se tornaram um importante diferencial para atrair fiéis.