Artes/cultura
19/11/2021 às 13:00•3 min de leitura
Na segunda metade do século XIX, o advogado brasileiro Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) foi uma figura-chave no combate à libertação de escravizados no Brasil, dando sequência à maior ação coletiva abolicionista das Américas em um processo legal que uniu mais de 200 pessoas em condição de cativeiro. Seu reconhecimento, que surgiu após quase 130 anos de sua morte, surgiu para evidenciar o símbolo de um homem que lutou pelos “desgraçados”, resgatando um sofrimento que estava em seu sangue e memória.
Nascido em Salvador, Bahia, em 1830, Luiz Gama, filho de um descendente de portugueses com uma escravizada liberta, foi vendido para um contrabandista do Rio de Janeiro como escravizado pelo próprio pai aos dez anos, como compensação financeira por dívidas em apostas. Aos 17 anos, após completar um longo tempo de serviço forçado em uma fazenda de São Paulo, o jovem teve sua alforria oficializada e partiu para uma carreira que se destacaria pelo brilhantismo e autodidatismo, quando aprendeu os fundamentos da leitura, escrita e oratória.
(Fonte: Getty Images/Reprodução)
Decidido a se tornar um advogado dos escravizados, Luiz Gama arriscou se candidatar a uma vaga na Faculdade do Largo São Francisco, mas viu suas condições social e étnica o impedirem de fazer parte do seleto grupo acadêmico. Assim, ele optou por frequentar bibliotecas e estudar os princípios jurídicos sozinho, enquanto se aprofundava nos ideais de um crescente movimento abolicionista que insurgia na região e agia como poeta, jornalista, tipógrafo e escrivão de polícia.
Entre 1831 e 13 de maio de 1888, estima-se que mais de 700 mil africanos foram trazidos ilegalmente para o Brasil, contrariando uma lei assinada em 7 de novembro de 1831 pelo império brasileiro como um acordo após pressões da coroa inglesa, que proibia o tráfico de africanos no País. A ordem, que passou a ser conhecida como “lei para inglês ver”, mostrou-se totalmente ineficaz e estimulou Luiz Gama, já advogado, a defender os escravizados que tinham o direito legal de liberdade.
Por meses, o abolicionista reuniu provas para demonstrar casos de pessoas contrabandeadas e argumentou a favor da liberdade de centenas deles, escancarando “que o Estado e o escravismo brasileiros, além de roubarem os direitos naturais e inalienáveis do homem, eram literalmente ladrões e criminosos, pois burlavam a lei que eles próprios criaram”. “Dizem que a quantidade de processos em que ele se envolveu foi enorme. Sob a guarda do arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo, encontram-se menos de 500. Mas isso deve ser analisado com cautela, pois muitos podem ter sido perdidos”, diz o historiador e escritor Paulo Rezzutti.
Apesar de Luiz Gama ter sido notório no combate ao tráfico ilegal de africanos, seu maior caso ganhou destaque em junho de 1869, quando um pequeno artigo no jornal informou que a família do comendador português Manoel Joaquim Ferreira Netto, que detinha uma impressionante fortuna de 3 mil contos de réis (cerca de R$ 400 milhões em valores atuais), estava brigando na Justiça pela herança do patriarca, que havia sido declarado morto em Portugal. Desse patrimônio, faziam parte 217 escravizados trancados em propriedades.
Conhecido como Questão Netto, o processo, desencadeado por conta do testamento de Ferreira Netto — que defendia a liberdade dos escravizados após sua morte — não ter sido devidamente cumprido, já que sua família continuava mantendo os cativos na mesma situação, tornou-se um caso de uma vida para Luiz Gama, que deu início à maior ação coletiva abolicionista das Américas.
(Fonte: Arquivo Nacional/Reprodução)
A peça, que contou com mais de mil páginas escritas, incluiu investigações profundas sobre cada um dos escravizados pertencentes ao comendador português, defendidos por Luiz Gama após vários outros potenciais “curadores” do caso recusarem a indicação do juiz. Para ganhar o processo, o representante reuniu nome, idade, naturalidade e histórias de vida, além de ter aplicado uma tese jurídica inédita e surpreendente.
“Ele teve a sacada de usar a voz do senhor de escravos como argumento jurídico contra ele próprio. O testamento havia sido publicado em vida na imprensa. Então, a estratégia dele foi a seguinte: se o próprio comendador escreveu que gostaria que os escravizados fossem libertados, por que eles ainda não estavam livres?”, conta o historiador Bruno Lima. “Ele para de usar a palavra 'escravo' no processo, chama-os de 'libertandos'. Na época, havia o crime de redução de uma pessoa livre à condição de escravizado. Isso não era permitido pela lei. Então, Gama inverte o jogo, mostrando ao juiz que a família do comendador estava cometendo um crime ao escravizar pessoas que já eram declaradas livres.”
Ao final do prazo, em 1878, as autoridades declararam a liberdade de 130 dos 217 alforriados pelo testamento, em um caso que ganharia repercussão apenas após 130 anos da morte de Luiz Gama, com a condecoração póstuma da certificação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 2015, que o reconheceu como membro da instituição.