Estilo de vida
04/04/2023 às 08:00•5 min de leitura
Muitas vezes, é fácil esquecer que escritores renomados também podem ser grandes admiradores de outros colegas do ramo, encontrando nos trabalhos de seus ídolos inspiração e coragem para criar suas próprias obras e deixar sua marca na história.
Um desses casos inclui Bram Stoker, o renomado autor irlandês e criador de Drácula, que se provou um verdadeiro “fã de carteirinha” de Walt Whitman – um homem queer e um dos mais influentes poetas americanos do século XIX, conhecido como “pai do verso livre” – não só o defendendo em discussões em seu círculo literário, como também professando seus sentimentos em uma longa carta cheia de emoção que abriu caminho para uma bela amizade.
De acordo com sua biografia, o primeiro contato que Stoker teve com os trabalhos de Whitman foi via uma resenha do trabalho do americano da edição de outubro de 1869 da Temple Bar: Uma Revista Londrina para Leitores da Cidade e do Interior.
A crítica foi extremamente negativa e atacou o estilo do poeta, o que não causou uma boa impressão no futuro romancista, algo que só foi aprofundando quando Folhas de Relva, a coleção de poemas de Walt, foi publicada pela primeira vez no território britânico em 1868.
Uma cópia de Folhas de Relva. (Fonte: Wikipedia/Biblioteca Pública de Nova York/Reprodução)
Por contar com um cunho homoerótico, a solução encontrada para finalmente trazer o livro para o Reino Unido sem violar as leis de pornografia da era vitoriana foi cortá-lo pela metade, transformando-o em uma mera seleção de poesias, e tornando o autor norte-americano uma grande piada entre diversos círculos literários da região.
Porém, um ano depois do lançamento da obra, ao ouvir seus colegas de faculdade zombarem dos versos do escritor, Stoker começou a se perguntar se havia julgado mal o poeta, aceitando uma cópia da obra de um desconhecido que estava ansioso para se desfazer dela, e decidindo ler sem preconceitos.
“Levei o livro comigo para o parque e à sombra de um olmo comecei a lê-lo. Logo minha própria opinião começou a se formar; era diametralmente oposta ao que eu vinha ouvindo. A partir dessa hora, tornei-me um amante de Walt Whitman”, escreveu o autor irlandês.
Após sua mudança radical de opinião, o futuro romancista passou a ser um fã devoto do "pai do verso livre" e seu trabalho, chegando até a defendê-lo durante um debate da Sociedade Filosófica de Trinity. Porém, o rapaz desejava muito manter algum tipo de relação com seu ídolo, escrevendo na noite de 18 de fevereiro de 1872 uma carta para ele com quase duas mil palavras.
De forma dramática, o jovem Bram começou afirmando que Walt poderia queimar a correspondência caso quisesse, porém, que esperava que ele resistisse a esse impulso.
Bram Stoker em 1906. (Fonte: Wikimedia Commons/Reprodução)
“Acho que não existe um homem vivo, mesmo você que esteja acima dos preconceitos da classe dos homens mesquinhos, que não gostaria de receber uma carta de um homem mais jovem, um estranho, do outro lado do mundo - um homem vivendo em uma atmosfera preconceituosa com as verdades que você canta e sua maneira de cantá-las. Se eu estivesse diante de você, gostaria de apertar sua mão, pois sinto que gostaria de você. Eu gostaria de chamá-lo de camarada e falar com você como os homens que não são poetas não costumam falar”, declarou Stoker em sua carta.
Não poupando elogios, o grande fã chamou Whitman de um "homem de verdade", expressando seu desejo de também alcançar este patamar e poder então ser como um irmão e um aluno para ele.
Além de palavras de admiração ao outro autor e momentos de dúvida própria, o irlandês compartilhou mais detalhes sobre si mesmo, como sua idade, que na época era 24 anos, como seus pais e amigos o chamavam, e até mesmo uma peculiar descrição detalhada de sua aparência, deduzindo que o americano estaria interessado em saber "aparência pessoal de seus correspondentes" por ser um "fisionomista perspicaz".
Porém, o sentimento de urgência no meio da noite se tornou uma grande vergonha pela manhã, impedindo Stoker de enviar a carta, que ficou guardada em uma gaveta em sua escrivaninha por anos.
Walt Whitman em 1887. (Fonte: Getty Images/Reprodução)
Foi apenas em 14 de fevereiro de 1876 que o romancista encontrou coragem para mandar a correspondência, após ter outra discussão defendendo Whitman em uma reunião de um clube do qual fazia parte.
Adicionando páginas extras, o escritor professou mais uma vez sua admiração pelo poeta, afirmando que todo o tempo que havia passado só tinha feito que ele amasse o trabalho do norte-americano ainda mais, e expressou seu desejo de um dia encontrá-lo na Irlanda.
Para a felicidade de Stoker, a resposta de seu ídolo chegou três semanas depois, com um agradecimento pelas cartas tanto como pessoa, quanto como autor.
(Fonte: Getty Images/Reprodução)
“Você fez bem em me escrever de forma tão pouco convencional, tão fresca, tão viril e tão afetuosa também. Eu também espero (embora não seja provável) que um dia nos encontremos. Enquanto isso, envio-lhe minha amizade e agradecimento”, escreveu Whitman.
Muitos anos depois, o americano falaria dessa troca de correspondências com um amigo chamado Horace Traubel, afirmando que Stoker era “um jovem atrevido”. “Quanto a queimar a epístola ou não, nunca me ocorreu fazer nada: o que diabos me importa se ele é pertinente ou impertinente? Ele era fresco, alegre, irlandês: esse era o preço pago pela admissão, e era o suficiente. Ele era bem-vindo! Eu não poderia deixar de responder calorosamente ao que é realmente pessoal: faço isso com todo o meu coração”, disse Walt.
Depois de muitas conversas escritas, os autores finalmente tiveram a chance de falar pessoalmente em março de 1884, quando o trabalho de Stoker o levou para Filadélfia, permitindo que ele visitasse a casa de Thomas Donaldson, um dos amigos e benfeitores do “pai do verso livre”, em um dia que seu grande ídolo estava lá.
O encontro foi tudo que o fã esperava e muito mais. “Encontrei nele tudo o que sempre sonhei ou desejei: mente aberta, visão ampla, tolerante ao extremo; simpatia encarnada; compreensão com uma percepção que parecia mais do que humana. Antes de nos despedirmos, ele me pediu para ir vê-lo em sua casa em Camden sempre que eu pudesse. Devo dizer que prometi. Ele é como uma lufada de ar fresco, bom e saudável do mar”, disse Stoker a Donaldson, que dividiu a conversa em suas memórias sobre o amigo, chamada Walt Whitman: O Homem.
Folheto da palestra sobre Lincoln dada por Whitman. (Fonte: Wikimedia Commons/Reprodução)
Esses dois autores que marcariam o universo da literatura ainda tiveram a chance de se encontrar mais duas vezes antes que Walt, que já tinha 53 anos quando Stoker escreveu a primeira carta em 1872, falecesse de pneumonia em março de 1892, mas não sem antes deixar aos cuidados de Donald uma herança que seria extremamente preciosa para o autor irlandês: as notas originais de uma palestra que Whitman havia dado na Casa de Ópera da Rua Chestnut.
Capa da 1ª edição de Drácula. (Fonte: Wikimedia Commons/Reprodução)
Muitos anos depois da morte de Whitman, Bram Stoker deixaria sua marca no mundo literário com Drácula, que foi lançado em 1897. E dada a admiração que o irlandês tinha pelo poeta, muitos estudiosos passaram a procurar sinais da influência do americano no romance gótico, com alguns afirmando que a sensualidade mórbida e sugestões a homossexualidade na obra continham a mesma energia dos trabalhos de Walt.
Além disso, o próprio Drácula pode ter sido inspirado no grande ídolo do romancista, compartilhando características físicas comuns como cabelos brancos, bigode farto, grande estatura, força e um porte leonino, uma descrição muito semelhante à feita pelo próprio autor sobre seu grande amigo em seu primeiro encontro.
Embora, o irlandês nunca tenha dito abertamente em quem o personagem foi inspirado, não seria surpreendente que um grande fã e admirador decidisse imortalizar seu querido herói da melhor forma que podia: em um livro que inspiraria a vida de muitos, assim como ele mesmo foi inspirado.