Greve Geral de 1917: a primeira paralisação geral do Brasil

23/08/2023 às 14:005 min de leitura

Há 106 anos, o Brasil parou pela primeira vez na história. Naquela época, o país tinha a imigração como uma grande força de trabalho e recebia pessoas de grupos étnicos variados de diversas partes do mundo. Todos eles, com sua bagagem natal, causaram um impacto profundo tanto na cultura e sociedade como na economia brasileira.

Os imigrantes trouxeram suas bases de pensamento político, em sua maioria de cunho libertário, que começaram a tomar forma em fraternidades e organizações operárias. O Brasil da República Velha atravessava um intenso e crescente processo de industrialização, financiado pelos comerciantes do café que investiram diretamente em setores têxteis, metalúrgicos e alimentícios, em sua maioria por motivações pessoais.

A participação do Brasil na Primeira Guerra Mundial dificultou ainda mais a vida dos operários e exigiu deles uma carga horária excruciante para atender às demandas da produção militar. Eles tiveram que lidar com um ambiente de trabalho extremamente insalubre e perigoso, com o péssimo tratamento do patronato e falta de suprimentos básicos.

(Fonte: Gli italiani nel Brasile/Reprodução)(Fonte: Gli italiani nel Brasile/Reprodução)

Em meio a isso, cresceu a necessidade dos operários em buscar reações coletivas para melhorias. No entanto, essa era uma época em que o comunismo não era muito bem difundido pelo Brasil e a esquerda revolucionária era radicalizada pelas vertentes do anarquismo (doutrina que considera o governo opressor e prega o fim do Estado), visando a autogestão e a tomada dos espaços de trabalho a partir de ação direta.

Com isso, paralisações em São Paulo e no Rio de Janeiro começaram a acontecer aos poucos, muito influenciadas pelo sentimento de força popular que derrubou, por exemplo, o czar Nicolau II, na Rússia, em fevereiro daquele ano, 1917.

Assim começaria Greve Geral de 1917, a primeira greve geral da história do Brasil.

O motim da fome

(Fonte: Arquivo Edgard Leuenroth/Reprodução)(Fonte: Arquivo Edgard Leuenroth/Reprodução)

O século XX foi marcado por estopins. Todas as maiores revoluções e guerras precisaram que um gatilho fosse acionado para finalmente acontecerem. Foi assim com a Primeira Guerra Mundial que, apesar de suas movimentações imperialistas ao longo dos anos, só teve início com o assassinato do herdeiro do trono austro-húngaro, Francisco Ferdinando, pelas mãos do jovem Gavrilo Princip.

O mesmo foi com a primeira greve geral da história do Brasil. A reação das autoridades frente à organização dos operários que reivindicavam melhores condições trabalhistas sempre foi brutal, sendo rotineira a intervenção violenta de policiais em reuniões e manifestações.

Em 9 de julho de 1917, o jovem espanhol José Martinez, de 21 anos, que trabalhava como sapateiro na fábrica Mariângela, no Brás, em São Paulo, começou um protesto às portas do local contra a carestia e as péssimas condições de trabalho. Ele era afiliado a duas entidades nascentes do sindicalismo brasileiro, a Federação Operária de São Paulo (FOSP) e a Confederação Operária Brasileira (COB).

Jose Martinez. (Fonte: Centro de Documentação e Memória (CEDEM)/Reprodução)Jose Martinez. (Fonte: Centro de Documentação e Memória (CEDEM)/Reprodução)

Rapidamente, o protesto se espelhou pelos bairros vizinhos, mobilizando centenas de trabalhadores, que largaram do seu trabalho para se unirem à causa. No meio da tarde, a ação da polícia para coibir a manifestação terminou em um tiroteio na cervejaria Antarctica, no bairro da Mooca, que a cavalaria invadiu para tentar dispersar as pessoas. No meio da confusão, Martinez foi baleado no estômago, morrendo na madrugada daquele dia.

Seu funeral aconteceu no cemitério do Araçá, em 11 de julho de 1917, reunindo milhares de pessoas que ignoraram todas as tentativas de bloqueio policial. Inflamados, promoveram discursos contra o governo e os patrões. 

No mesmo dia, os operários da fábrica Cotonifício Crespi, em São Paulo, decretaram greve. Cerca de 75% dos operários eram imigrantes italianos que precisavam doar uma parte do salário ao Comitê Italiano Pró-Pátria de São Paulo, que por sua vez revertia as verbas para a Itália como contribuição ao esforço bélico.

Enquanto os trabalhadores tinham seus salários de fome minados em todos os aspectos, a burguesia ítalo-paulistana assistia tudo de camarote e de braços cruzados, e isso refletiu todas a tensões que caracterizavam os problemas da industrialização. Rapidamente, a decisão de greve se espalhou como um rastilho de pólvora, contaminando todo o setor, que decretou guerra contra o sistema que os consumia e os desprezava.

Estava formado o que alguns historiadores gostam de chamar de “motim da fome”.

A revolta necessária

(Fonte: Arquivo Edgar Leuenroth (UNICAMP)/Reprodução)(Fonte: Arquivo Edgar Leuenroth (UNICAMP)/Reprodução)

Tudo o que os operários queriam era o básico: direitos trabalhistas. Afinal, para eles não havia férias, carteira de trabalho, aposentadoria, adicional noturno, folgas ou descansos, tampouco segurança em relação aos acidentes nas fábricas. Os salários eram baixíssimos em comparação com o custo de vida, que havia aumentado 189% desde 1914 devido à opção da indústria em fornecer mercadorias e alimentos prioritariamente aos países em guerra, causando um rombo no mercado interno e uma alta vertiginosa nos preços dos produtos.

Mulheres e crianças desempenhavam as mesmas funções que os homens, mas recebiam ainda menos. Assim como a personagem Fantine, de Victor Hugo, em Os Miseráveis, elas precisavam lidar com as investidas dos contramestres se quisessem manter o emprego.

Apesar de não estarem na liderança dos sindicatos, elas formaram a linha de frente da greve, pedindo melhores condições para sua classe e fim do trabalho infantil.

Desde a segunda metade do século XIX, o Brasil assistia a greves que apenas mobilizavam grupos restritos e não tinham maior repercussão. Qualquer tipo de paralisação era coibida ostensivamente pelo governo e o patronato da época. “O proletariado nacional não tem recebido a menor lei que o ampare”, disse Maurício de Lacerda, então deputado federal pelo Rio de Janeiro. 

Portanto, a revolta não só era necessária como inevitável.

"A bombons e chocolate"

(Fonte: Arquivo Edgard Leuenroth (UNICAMP)/Reprodução)(Fonte: Arquivo Edgard Leuenroth (UNICAMP)/Reprodução)

No dia seguinte ao funeral de José Martinez, o comércio fechou as portas, a máquina fabril parou e a greve começou. Como resposta, o governo intensificou ainda mais a repressão aos protestos atacando e matando líderes e operários. O sentimento de revolta dos trabalhadores evoluiu para o ódio, resultando em diversos episódios de vandalismo contra armazéns, veículos e forças policiais pela cidade.

As ruas não eram mais seguras. O tiroteio se tornou tão grande e assustador que até mesmo os militares hesitavam entrar em alguns bairros, temendo os disparos que podiam vir de qualquer lado. Apesar de muitos grevistas terem sido mortos, policiais também foram abatidos ao longo dos confrontos.

“Os anarquistas, dirigindo os elementos operários, impediram a vida da cidade, atacaram a propriedade e mataram. A polícia não poderia tratá-los a bombons e chocolate”, criticou o opositor Álvaro de Carvalho, deputado federal pelo estado de São Paulo.

Em resposta, Lacerda disse que os operários sempre reclamaram pacificamente e por isso mesmo suas reivindicações foram esquecidas. “Sempre que suas reclamações tomam uma forma ofensiva, são metralhados”, completou ele.

Ao longo dos 30 dias que durou a greve, estima-se que cerca de 50 mil trabalhadores em São Paulo aderiram à paralisação, lutando para combater o descaso e a repressão por parte do governo. Foi diante desse número imenso que o governo simplesmente perdeu o controle. Rapidamente, o movimento se espalhou para o Rio de Janeiro e Porto Alegre, se estabelecendo como a primeira greve geral do país.

(Fonte: Wikipedia/Reprodução)(Fonte: Wikipedia/Reprodução)

Uma vez que os grevistas não possuíam uma entidade que os representasse — estavam agrupados apenas no Comitê de Defesa Proletária —, eles não sabiam exatamente com quem negociar um acordo para reivindicar seus direitos. Diretores dos maiores jornais de São Paulo, organizados na Comissão da Imprensa, ficaram encarregados de formular um acordo após ouvir os operários e levar o documento ao poder público e aos industriais.

Em 16 de julho, o fim da greve em SP foi assinado na redação do jornal O Estado de S. Paulo, mas em outras cidades só terminou conforme cada setor chegou a um acordo com seu patronato.

Meses depois, o acordo começou a se diluir por parte dos empresários, que deixaram de cumprir com suas obrigações. O próprio Congresso Nacional não fez nada para criar leis trabalhistas e impedir que paralisações que afetavam a vida da população acontecessem novamente.

Contudo, isso não altera em nada a relevância histórica da primeira greve geral brasileira. Afinal, não é como se essa mentalidade escravagista de trabalho do governo e dos empresários tenha desaparecido nos tempos de hoje, apesar de todos os avanços.

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