Estilo de vida
30/04/2024 às 20:00•5 min de leituraAtualizado em 30/04/2024 às 20:00
A violência contra mulher é endêmica. Dados de 2021 lançados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) indicaram que 1 em cada 3 mulheres é submetida à violência física ou sexual, por um parceiro íntimo ou por um desconhecido. São 736 milhões de mulheres e esse número permaneceu praticamente inalterado na última década.
O relatório também apontou que as regiões da Oceania, Sul da Ásia e África Subsaariana possuem as maiores taxas de prevalência de violência por parceiro íntimo entre mulheres de 14 a 49 anos, variando de 33% a 51%. Atualmente, as taxas mais baixas encontram-se na Europa (16-23%), Ásia Central (18%), Ásia Oriental (20%) e Sudeste Asiático (21%). Por outro lado, Afeganistão, República Democrática do Congo, Paquistão, Índia e Somália são os cinco piores países para uma mulher viver em quesito de proteção e direitos.
No entanto, é importante destacar — e não se deixar enganar — por números que pareçam “pequenos”, pois a agressão sexual de todas as formas contra a mulher faz parte de uma estrutura muito bem estabelecida pelo mundo, como é no caso da Coreia do Sul, cuja sociedade foi fortemente construída sobre ideais patriarcais que se tornaram cada vez mais sólidos, principalmente no pós-guerra.
Apesar de as mulheres serem as que mais se graduam no país, com mais de 70% das jovens entre 25 e 35 anos ativas no mercado de trabalho, possuem um salário muito abaixo da média. Com 31,1%, a disparidade salarial para um cargo de tempo integral na Coreia em 2021 foi a taxa mais elevada entre os 37 países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
E antes só esse fosse o problema. A falta de políticas sólidas focadas em transformações de gênero, intervenções socioeducacionais e outras proteções legais, faz aumentar a cada ano as taxas de crimes físicos e digitais contra mulheres. O Global Gender Gap Report de 2022 já destacou que a Coreia ocupa uma posição baixa em índices globais de igualdade de gênero. Um estudo de 2015 do governo sul-coreano revelou que 80% das mulheres entrevistadas relataram ter sido assediadas sexualmente em seu local de trabalho. Em uma pesquisa de 2017, a Human Rights Watch expôs que quase 80% dos homens entrevistados admitiram atos violentos contra uma mulher.
Isso constitui o problema que são as spycams ilegais da Coreia do Sul, que vigiam mulheres em banheiros públicos.
Pode-se dizer que a segurança — ou a ideia dela — foi um verniz muito bem espalhado sobre a sociedade sul-coreana. Não é para menos que geralmente as mulheres se sentem seguras em sair sozinhas à noite, afinal, as taxas gerais de homicídio no país estão entre as mais baixas do mundo – abaixo de 1 por 100 mil pessoas – e a criminalidade de rua é algo raro de se ver.
Por outro lado, as mulheres constituem mais da metade das vítimas de homicídio relatadas na Coreia do Sul, que emplaca em terceiro lugar no ranking de países onde as mulheres são mais assassinadas no mundo, representando 52,5% do total de vítimas de homicídio, segundo um relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).
Excluindo a China, Seul, capital da Coreia do Sul, é a segunda cidade mais vigiada do mundo, com suas 237,76 câmeras de segurança por quilômetro quadrado, conforme dados compilados pela empresa de segurança cibernética Comparitech. São mais de 1,6 milhão de câmeras em operação, das quais aproximadamente 45% delas foram instaladas para fins de segurança.
Mas parece que, apesar disso, nada impediu que, em setembro de 2022, uma funcionária do sistema metroviário de Seul fosse espancada até a morte em um banheiro de uma estação por um colega de profissão que a perseguiu e a ameaçou por 3 anos.
Em uma das nações mais conectadas do mundo, homens instalam câmeras espiãs em banheiros públicos, vestiários femininos, lojas e metrôs para filmar mulheres em seus momentos mais íntimos, como urinando ou trocando de roupa, para poder vender o conteúdo online sem seu consentimento.
Em Minha vida não é sua pornografia: crimes sexuais digitais na Coreia do Sul, um relatório de 96 páginas elaborado pela Human Rights Watch (HRW), uma pesquisa mostra que em 2017, o número de casos de crimes sexuais digitais por spycams constituiu 20% dos processos por crimes sexuais. Em um espaço de 5 anos, a polícia sul-coreana teve mais de 30 mil relatos de dispositivos de gravação ilícitos encontrados em locais públicos.
Enquanto os criminosos lucram sobre a imagem de suas vítimas, ao mesmo tempo que destroem suas vidas, elas enfrentam o machismo e descaso da justiça. Raramente a polícia aceita as queixas dessas mulheres que flagram os crimes, chegando a se comportar até de maneira abusiva com elas, minimizando danos, culpando-as ou as submetendo a interrogatórios hostis repleto de questionamentos inadequados, beirando a violência e deixando claro como os homens tendem a se proteger no país – e no mundo.
Quando essas mulheres conseguem avançar com os casos e chegam ao tribunal, deparam-se com penas baixas, como multa ou pena suspensa, ou uma combinação dos dois. Em 2020, o HRW publicou que 79% dos condenados receberam uma pena suspensa por captar imagens íntimas de mulheres sem consentimento. Muito disso também se deve pelo sistema de justiça sul-coreano não dispor de mulheres em cargos de promotoras e juízas para lidar com esse tipo de caso em que a sociedade sempre culpa a vítima.
Nada ironicamente, a burocracia de um julgamento acaba exaurindo a vítima, após diversos recursos que sempre tentam minimizar a agressão e o sofrimento. O processo não só é traumatizante para essas mulheres, como também perigoso, uma vez que a apresentação de uma queixa civil exige que as vítimas indiquem seus nomes e endereços, disponibilizando essas informações ao público, inclusive à pessoa que cometeu o crime.
Como resultado, o número de mulheres que decidem processar esses homens caiu drasticamente nos últimos anos. Elas preferem evitar usar banheiros públicos e lidar com as consequências, como questões fisiológicas e emocionais, além de situações inconvenientes, como urinar na própria roupa em público ou até mesmo usar fraldas para sair de casa.
Esse ano, Jazmun Jennings, uma usuária do TikTok, viralizou ao ir em sua rede social durante uma viagem à Coreia do Sul para fazer um alerta aterrorizante às mulheres sobre a prevalência de spycams.
“Se entrar em qualquer banheiro feminino, encontrará todas as fendas cobertas com papéis higiênicos, e isso não é por acaso”. Jennings ainda salientou que essa questão vai além dos banheiros, ou seja, estamos falando de Airbnb's, quartos de hotel e basicamente qualquer área. Além de compartilhar que essas câmeras podem ser encontradas nos locais mais inusitados, como em alarmes de incêndio e relógios, a viajante instruiu as turistas a viajarem com um dispositivo capaz de reconhecer uma câmera escondida.
“Esses dispositivos podem ajudá-la a encontrar a luz deles no local, formando um halo onde há eletrônicos escondidos”, explicou.
Uma vez que a pornografia é fortemente proibida na Coreia do Sul, esses denominados "molkas" se tornaram um dos artifícios da de revenge porn ("pornografia de vingança" em português), famosa principalmente nos Estados Unidos, em que homens divulgam suas relações sexuais para acabar com a imagem de mulheres. Na Coreia, os molkas se tornaram uma espécie de vingança de homens jovens, educados e experientes em tecnologia que culpam as mulheres e o feminismo por suas dificuldades econômicas e sociais, em uma sociedade pressionada pelo sucesso, em que o desemprego jovem se tornou uma epidemia.
Uma pesquisa feita pela Realmeter mostrou que 76% dos homens na faixa dos 20 anos se opõem ao feminismo no país, e quase 60% dos entrevistados nessa faixa de idade acreditam que as questões de gênero são a fonte dos problemas. A mais recente pesquisa do Instituto Gallup mostrou, sem surpresa, que 44% dos homens entre 18 e 20 anos apoiam o Partido do Poder Popular (PPP), que hasteia a bandeira não só do movimento antifeminista na Coreia do Sul, mas contra imigrantes, minorias sexuais e deficientes. Eles têm sido os maiores fomentadores do discurso de ódio online contra mulheres.
O governo e a Assembleia Nacional da Coreia do Sul até deram alguns passos importantes desde os protestos em massa de ativistas em 2018 para fornecer serviços a pessoas que sofrem crimes sexuais digitais e reformar a lei, mas essas medidas seguem falhando drasticamente. E assim deve continuar enquanto não entenderem que a desigualdade de gênero alimenta e normaliza esse tipo de crime.