Artes/cultura
17/10/2022 às 08:00•4 min de leitura
No início da noite de 16 de outubro de 2006, a jovem de 13 anos, Megan Meier, cometeu suicídio em seu quarto. Ela foi encontrada por sua mãe, Christina Meier, e declarada morta no dia seguinte já no hospital. Meier fez parte de um caso amplamente divulgado pela mídia dos Estados Unidos por ter sido vítima de cyberbulliyng através da antiga rede social MySpace, um fenômeno entre a geração jovem dos anos 2000.
A disseminação da internet, o acesso a vários dispositivos eletrônicos e a quantidade de horas que os jovens passam nas redes sociais, principalmente Instagram e Facebook, aumentaram o assédio virtual vertiginosamente ao longo dos anos.
(Fonte: Moore Media/Getty Images)
A Security Org fez uma pesquisa com pais de crianças entre 10 e 18 anos, e descobriu que 21% das crianças já sofreram cyberbullying. Em janeiro de 2020, 44% de todos os usuários de internet nos EUA alegaram terem sofrido assédio online, com uma prevalência maior de xingamentos ofensivos representando 37% dos casos.
Entre todas as redes sociais pesquisadas, os usuários no YouTube são os mais propensos a sofrerem ataques cibernéticos, com 79% dos casos, seguidos pelo Snapchat (69%), TikTok (64%) e Facebook (49%). Os pesquisadores perceberam que, conforme a idade da criança aumenta, em intervalos de dois anos, cresce em 2% a chance de ser atacada.
Desde 2008, a ideação e tentativas de suicídio entre adolescentes dobraram, sendo que 1 em cada 20 experimenta suicídio em um único ano. É a maior taxa em quase 20 anos. A cultura do ódio e perseguição ganhou tanto espaço nos EUA – que está entre os 3 países que mais praticam assédio online – que foi criada a denominada Kiwi Farms, uma comunidade online feita para direcionar seus usuários para assediar um alvo de todas as maneiras possíveis.
(Fonte: CPJ/Reprodução)
De 4chan a Tumblr, certamente a Kiwi é a única comunidade que luta ativamente para sustentar a alcunha de "o pior lugar da internet". Fundada em 4 de fevereiro de 2013 por Joshua Conner Moon, a Kiwi ficou conhecida por abrigar os "ratos da internet", ou seja, os extremistas políticos e religiosos, xenofóbicos, racistas, teóricos da conspiração e outros tipos de pessoas.
A Kiwi Farms se tornou um local especializado em atacar minorias, mulheres, feministas, jornalistas, pessoas "neurodivergentes", celebridades e personalidades da internet. Os alvos dos tópicos estão sujeitos desde assédio e perseguição online de maneira massiva e ordenada pelos usuários fanáticos, até ataques físicos ou materiais fora das telas dos computadores e celulares.
O modus operandi do fórum começa, a princípio, com a publicação de informações pessoais de suas vítimas, prática chamada de doxxing, que envolve nome, endereço, telefone residencial, local de trabalho, rendas e dados financeiros. Para isso, é organizada uma verdadeira força-tarefa para se infiltrar em vários aspectos da vida da pessoa, incluindo stalking, visando descobrir informações interessantes que não são encontradas online, e que por vezes só são obtidas por ataques hackers.
Joshua Moon. (Fonte: JoshNull/Wikimedia Commons)
Com isso, as vítimas são sentadas na cadeira de réu de um verdadeiro tribunal online, com invenção de crimes, falsificações, falsas denúncias (swating), a prejudicando legalmente para que perca, no mínimo, seu emprego ou liberdade. Depois, a mira pode se voltar para amigos e familiares, e não existe um descanso. Algumas campanhas da Kiwi Farms podem continuar por meses ou anos, levando as vítimas a tirarem a própria vida para fazer tudo parar.
Em agosto desse ano, a streamer da TwitchCam e ativista trans, Clara Sorrenti, foi obrigada a fugir para o Canadá depois que usuários da Kiwi chamaram uma falsa ameaça de bomba em sua casa, fazendo com que a polícia fechasse um quarteirão de seu bairro.
No mesmo mês, Sorrenti, conhecida online como Keffals, foi agredida, presa e detida por mais de 10 horas depois de ter sua identidade roubada após alguém disparar e-mails em seu nome fazendo uma ameaça de atentado em massa a políticos locais. Ela foi forçada a se mudar de casa e viver em um hotel para sua segurança, porém não por muito tempo.
Os trolls conseguiram identificar o local onde ela estava ao invadirem sua conta na Uber e divulgarem mais dados, fazendo-a fugir para Belfast, na Irlanda. Apesar de toda essa perseguição, Sorrenti não se calou e usou sua plataforma para promover uma campanha de desmonte da Kiwi Farms, que recebe até 16 mil logins diários, visando atacar as empresas que mantinham o site operacional.
Clara Sorrenti. (Fonte: Keffals/YouTube)
Muito diferente das demais plataformas que possuem práticas rigorosas de moderação de conteúdo para impedir a proliferação desordenada desse comportamento online, como um site independente, a Kiwi Farms está fora do alcance, preocupando as autoridades.
“Esse tipo de coisa poderia facilmente se tornar um banco de dados para atingir os agentes do FBI, por exemplo. Não seria difícil”, alerta Frederick Brennan, que já trabalhou com o fundador da Kiwi, e fundou o site 8chan. Em entrevista à NBC News, o especialista acredita que as técnicas de assédio podem ser canalizadas para objetivos maiores, como políticos e agentes de segurança.
Após seu site ter sido apropriado por nacionalismo branco e extremismo de todos os vieses, Brennan passou os últimos anos tentando derrubá-lo, temendo que o monstro que ele se tornou pudesse representar riscos substanciais à segurança nacional. “O que Moon está fazendo é pior, porque está realmente mirando em pessoas específicas”, disse ele.
(Fonte: Le Monde/Reprodução)
Quando procurado pelos jornalistas da NBC, Moon respondeu por e-mail que "a imprensa é uma escória", ignorando as demais perguntas feito pelos jornalistas.
Segundo Brennan, Moon, como moderador e líder, representa o topo da cadeia alimentar na Kiwi Farms, responsável por decidir quem é o alvo da vez e como atacá-lo. Muito diferente dos outros fóruns, como o 4chan, onde os administradores têm pouca orientação sobre as campanhas de assédio de seus usuários, Moon tem total controle de todos os aspectos do site.
(Fonte: Moore Media/Getty Images)
Após o levante promovido por Sorrenti e ampla disseminação pela mídia, em 3 de setembro, a empresa Cloudflare, que fornece uma rede de distribuição de conteúdo, serviços de segurança da internet e servidor de nome de domínio, decidiu bloquear a Kiwi Farms.
O fórum entrou em uma busca desesperada para encontrar outros serviços de infraestrutura para conseguir se manter online, mas foi rejeitado por vários deles, como o host russo DDoS-Guard. Moon declarou que não vê mais um cenário em que seu site se mantenha de maneira consistente no ar, visto que foi removido até mesmo do Internet Archive.
Como medida paliativa, o Kiwi Farms encontrou um lar com a Vanwa Tech, que possui um histórico em prestar estrutura a sites que já foram banidos. Apesar de o Kiwi parecer que nunca estará totalmente fora do ar, Sorrenti se mostrou otimista pela perda da capacidade de comprar serviços básicos da internet, mostrando como o empreendimento megalomaníaco de Moon está ficando cada vez mais impotente.
De qualquer forma, ela encarou isso como uma vitória, tanto por aqueles que já morreram por suicídio, vítimas da cultura perturbadora da Kiwi Farms, como foi o caso de Lizzy White, quanto dos nomes cogitados em futuras campanhas por essas pessoas, que cometem ataques para desempenhar sua obsessão por uma falsa e patética sensação de controle e poder.