Artes/cultura
13/11/2022 às 12:00•4 min de leitura
Assim que o segundo presidente dos Estados Unidos foi eleito, em 1796, sua esposa Abigail Adams implorou em uma carta para que "se lembrasse das damas" quando ele estruturasse um governo para as colônias americanas. “Seja mais generoso e favorável a elas do que seus ancestrais. Não coloque tal poder ilimitado nas mãos dos maridos. Lembre-se, todos os homens seriam tiranos se pudessem”, escreveu Adams.
Esse pedido singelo, mas tão significativo, é o retrato da luta desesperada das mulheres por direitos básicos ao longo de nossa História – e também das suas empreitadas em ouvir recusas e serem deixadas de lado na sociedade como se fossem apenas uma presença figurativa.
Sendo assim, as mulheres não tiveram outra opção senão seguir exatamente o que Adams previu em sua carta: o início de uma rebelião. “Não nos sujeitaremos a nenhuma lei em que não tenhamos voz ou representação”, terminava a carta.
E assim foi pelo mundo inteiro, principalmente no Brasil, quando um grupo de mulheres formou o Lobby do Batom, uma frente para lutar pelos seus direitos civis e políticos na década de 1980.
(Fonte: Arquivo Nacional/Reprodução)
Quando o Golpe militar de 1964 derrubou o governo do então presidente da República, João Goulart, democraticamente eleito, e instaurou a ditadura no Brasil, foi o período em que o papel da mulher e sua participação na política e na sociedade se transformaram para sempre. Apesar de séculos de avanços, nada se compara com as revoluções que os movimentos feministas fizeram a partir daquela época.
Em 1960, a mulher atuava como um papel figurativo na sociedade, privada de sua autonomia e sempre associada a uma figura masculina, como o pai ou marido, para poder desempenhar funções básicas, como trabalhar e ter o próprio dinheiro. Ao mesmo tempo, a presença feminina acompanhava o processo de industrialização e urbanização pelo qual o país atravessava desde o fim da Segunda Guerra Mundial e que, influenciado pelos movimentos sufragistas nos Estados Unidos, engataram em um choque com os paradigmas estruturais sobre o que a sociedade esperava delas.
A busca por direitos individuais que lhes garantissem condição de cidadania plena, do acesso ao estudo e ao uso de contraceptivos, começou a ser confrontada nessa época.
(Fonte: Wikimedia Commons)
Mas esse combate só aconteceu devido como a imagem do ser feminino foi moldada ao longo da História, sendo constantemente retratada como algo delicado, caseiro, materno, perfeito, incólume e sagrado. Como a historiadora brasileira Mary Del Priore ressalta, a mulher que manifestasse comportamentos opostos a esse, eram consideradas seres antinaturais.
Portanto, a partir do momento em que uma mulher se destaca, ou melhor, se rebela contra esses padrões estruturalmente impostos, a ela são atribuídos todos os tipos de perseguições, julgamentos e sofrimentos – como ainda acontece. Na época do autoritarismo militar, dois grupos de mulheres se formaram: aquelas que embarcaram em lutas armadas, desafiando os militares, e aquelas que enfrentaram os estereótipos sociais ao reivindicar direitos básicos, como a creche.
(Fonte: Centro de memória Bunge/Reprodução)
Quando a ditadura caiu e José Sarney ascendeu ao poder de maneira democrática, depois de 21 anos de opressão militar, foi iniciado o processo de redemocratização do Brasil, a partir de 15 de março de 1985, e a luta das mulheres sofreu uma reviravolta.
Considerado um marco no processo de articulação civil e política pelos seus direitos, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), resultado direto da pressão exercida pelos movimentos feministas que prosperaram na ditadura. O CNDM criou um espaço de deliberação das questões femininas, promovendo debates e gerando campanhas para auxiliar na promoção dos direitos das mulheres e garantir igualdade de condições perante os homens na vida pública.
Apesar disso, o CNDM não apagou os problemas que as mulheres enfrentavam, muito pelo contrário, sua luta apenas inflamou essa ideia de subversão dos papéis de gênero, e elas passaram a ser rotuladas como “putas”.
(Fonte: Fernando Bizerra/Arquivo BG Press/Reprodução)
De qualquer forma, o papel do CNDM na sua primeira gestão, de 1985 a 1989, foi fundamental durante o processo de composição da nova Constituição Federal, que abrangeria os direitos de toda a população brasileira. Para isso, aconteceu a Assembleia Constituinte, que elegeu por voto direto em 1986, 559 deputados, dos quais apenas 26, ou seja, 5%, eram mulheres. Entre professoras e médicas, a maioria das constituintes pertencia ao PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), que contou com 11 representantes.
Ainda que a quantidade fosse muito pequena, já era considerado algo revolucionário para a época e um progresso na atuação feminina na política do país. Isso porque, na Assembleia de 1934, a Assembleia Constituinte contou apenas com duas mulheres: Carlota Pereira de Queiroz e Almerinda Farias da Gama.
Com apoio do CNDM, que atuou como órgão mediador entre os movimentos de mulheres, como o Lobby do Batom, e as parlamentares constituintes, houve uma união em busca pela ampliação dos direitos civis, sociais e econômicos das mulheres; definição do princípio da não discriminação por sexo e raça-etnia; a igualdade de direitos e responsabilidade na família; proibição da discriminação da mulher no mercado de trabalho, e igualdade jurídica entre homens e mulheres.
(Fonte: Agencia Camara/Reprodução)
Entre as 3.321 emendas apresentadas pelas mulheres, destaca-se conquistas notórias, como a licença-maternidade de 120 dias, ações para combater a violência doméstica e direito à igualdade na posse de terras igual ao homem.
Engana-se quem imagina que o Lobby se restringiu aos direitos das mulheres. Na Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, um documento elaborado no Encontro Nacional da Mulher e Constituinte, promovido pelo CNDM e entregue em 1987, foi exigido a inclusão da história africana da cultura afro-brasileira na educação básica; a criação de um Sistema Único de Saúde; políticas de proteção ao meio ambiente, entre outros.
Apesar de todo seu esforço social em prol de um país mais justo e igualitário, o movimento foi ironizado desde o princípio, a começar pelo nome Lobby do Batom ou Lobby das Meninas, um termo cunhado pela mídia de forma pejorativa para minimizar a luta. Contudo, assim como faz parte do legado de movimentos minoritários, a ideia do batom no termo foi absorvido pelas mulheres e ressignificado como uma palavra de orgulho.