Artes/cultura
02/12/2019 às 15:00•5 min de leitura
Originalmente nascida Evelyn Grace Victoria, em 30 de dezembro de 1921, na cidade de Sale, na Austrália, Anne Hamilton Byrne não teve uma infância recheada de privilégios como sua vida de adulta indicava. Na verdade, ela não era absolutamente nada do que aparentava.
Ela era a filha mais velha de Ralph Edwards e Florence Holie — que tiveram oito filhos — e desde pequena foi vitimada pela inconsistência do ambiente familiar. Seu pai vivia entrando e saindo de sua vida e da de seus irmãos, abandonando-os sempre que a situação ficava difícil demais para aguentar — o que geralmente era reflexo direto dos problemas mentais que sua mãe enfrentava.
Florence Holie tinha esquizofrenia, depressão profunda e sinais de transtorno de identidade; por isso, sua vida era definida pelas temporadas que passava nos hospitais psiquiátricos. Anne Byrne chegou a afirmar não se recordar de um momento em que não foi preciso conter a mãe durante os momentos agressivos ou buscá-la no meio da rua, às vezes até mesmo totalmente despida.
Em contraste com isso, porém, durante a transição da infância para a adolescência, Anne Byrne alegou nunca ter enxergado a instabilidade dos pais como algo ruim — por mais que fossem ela e os irmãos que sofressem com o desamparo parental. Ela dizia os ver como dois seres mundanos e iluminados. Anne era absolutamente resignada em relação a tudo por que passava, até mesmo ter que, por vezes, largar os estudos para cuidar de seus irmãos quando a mãe estava internada e o pai não voltava para casa.
No entanto, em análise por psicólogos e psicanalistas, essa condescendência toda foi definida como uma possibilidade de se tratar de traços sutis de um distúrbio antissocial e de falta de empatia, uma vez que, na verdade, Anne Byrne não conseguia nutrir qualquer tipo de sentimento por seus parentes, mas criava um tipo de realidade alternativa. Nunca amada ou cuidada, parte de seu mundo de delírios tinha a ver com a maneira deturpada como carregava a sua religiosidade, alegando ser Jesus Cristo reencarnado no corpo de uma mulher loira e bonita.
Em meados de 1941, depois de alguns anos vivendo em orfanatos, Anne Byrne atingiu a vida adulta, mudou-se para Melbourne e conheceu e se casou com o seu primeiro marido, Lionel Harris; ela então teve sua primeira filha, Natasha Harris. Já em 1951, ela se tornou obcecada por yoga e logo começou a dar aulas na escola Gita School of Yoga, tanto em Melbourne quanto em Geelong. Lá, ela conheceu Margrit Sagesman e deu início à sua carreira inventada e repleta de mentiras. Anne se apresentou como psicoterapeuta, enfermeira e se autoproclamou uma líder espiritual. Todos esses falsos atributos contribuíram para que ela conseguisse conquistar a simpatia das pessoas, ainda mais por ela ser considerada muito “iluminada e sábia” pela maioria de seus alunos.
De fala mansa e olhar hipnotizante, Anne Byrne valeu-se disso para pavimentar os primeiros passos que daria na sua futura estrada de manipulação e controle. Durante todo esse tempo, enquanto desenvolvia os seus discursos, ela se aproximava de mulheres ricas, mães e esposas de meia-idade que chegavam até ela com as suas insatisfações, em busca de apoio e compreensão — já que o divórcio era algo incomum para época —, e Anne tinha o trabalho de convencê-las a deixarem seus maridos e suas famílias. A tática focava em pregar o seguinte pensamento: “Não há família própria, apenas grande amor”.
Em 1958, Lionel Harris sofreu um acidente de carro e morreu. Em vez de sofrer a perda do marido, Anne Byrne aproveitou a tragédia para ganhar ainda mais a simpatia das pessoas e pela primeira vez atraiu o apoio de homens. Nessa época, já havia um pequeno grupo de pessoas que dava suporte e ouvia os pensamentos que ela pregava. Anne passou então a inventar relatos ainda mais ficcionais para alguns membros, no intuito de conquistar confiança.
Essa base já mais sólida foi fundamental para o ponto de virada do culto, que aconteceu no inverno de 1961. Anne Byrne conheceu o doutor Reynor Johnson, mestre na Queen’s College, Universidade de Melbourne, que também era uma autoridade em misticismo. Ele estimulou ainda mais a obssessão da mulher por assuntos que envolviam Nova Era, Cristianismo, Apocalipse, Ufologia, Parapsicologia e Hinduísmo.
Unindo tudo isso a crenças esotéricas diversas e seu carisma pessoal, Anne Byrne desenvolveu sua própria religião idiossincrática. Em 1963, junto com Raynor, ela fundou o culto "A Grande Irmandade Branca", depois renomeado para "A Família". Milionário, Raynor comprou não só a loucura de Anne, mas também um terreno em Ferny Creek a 37 quilômetros do corrupto hospital psiquiátrico Newhaven, onde os médicos e as enfermeiras compactuavam com o pensamento dos dois.
Assim foi intitulada a fase que fez centenas de pessoas seguirem Anne Byrne após um acidente de carro de sua primogênita. A garota sofreu um traumatismo craniano, e os médicos afirmavam que isso lhe custaria a visão. Relutante em aceitar isso, Anne ficou diante da cama pregando que a filha voltaria do coma ilesa e, quando isso de fato aconteceu, ela vendeu o fato como um milagre, fazendo todos acreditarem que ela tinha grandes poderes.
No Santiniketan Lodge, o quartel-general d’A Família, havia um trono púrpura; era de lá que Anne pregava seus discursos incompreensíveis sobre “seguir em direção à unidade” e outras coisas que aparentemente só faziam sentido na cabeça dos membros, pois todos a adoravam. O uso de drogas, em especial o LSD, era uma prática que fazia parte dos rituais do culto, visto que deixava a mente mais suscetível a implantações de falsas memórias e ao acesso aos sentimentos mais profundos das pessoas. O objetivo perverso era usar essas informações contra elas e a favor de Anne.
Para a mulher, eles estavam enfrentando o apocalipse e somente ela e seus seguidores escolhidos a dedo sobreviveriam para recriar a humanidade. Anne era a salvadora deles, mas apenas seguindo as ordens divinas de uma missão. Sendo assim, todos precisavam ouvi-la com a mente e deixar que ela entrasse para consertá-la e torná-los, enfim, dignos.
Sempre muito bem vestida e cheia de joias, mas ainda insegura quanto à sua aparência — por isso fazia diversas cirurgias plásticas —, em 1971 Anne Byrne começou a atrair crianças para o culto. Primeiro, um pequeno grupo de sete, que eram sobrinhos e filhos de membros, e que ela passou a vestir exatamente com a mesma roupa e o mesmo corte de cabelo — sempre tingido de loiro. Todos necessariamente brancos e iguais, considerados “Os Prometidos”.
Depois, as coisas pioraram. Anne Byrne passou a adquirir, por meios ilegais, bebês e crianças entre os anos de 1971 e 1975. As adoções eram irregulares e organizadas por advogados, médicos e assistentes sociais que faziam parte do culto e que podiam burlar o sistema. As identidades das crianças eram alteradas para que o sobrenome Hamilton-Byrne fosse inserido.
Elas então eram mantidas no Uptop, um acampamento em Taylor Bay, perto da cidade de Eildon, e recebiam educação doméstica. A lavagem cerebral por parte das "Tias", um grupo de inspetoras, começava com a informação de que Anne Byrne era a mãe biológica. Todo o acesso ao mundo exterior era privado, e elas sofriam diárias sessões de espancamento e quase afogamento. Anne os agredia com salto de sapato, varas, pedaços de madeira e cabos de vassouras. Em meio a isso, as crianças eram submetidas a dietas espartanas que consistiam em apenas saladas. Desesperadas de fome, acabavam comendo grama, sementes e lixo.
Sob o efeito de LSD, as crianças eram ainda colocadas em uma sala escura e forçadas a escutar repetidamente os sermões de controle mental de Anne Byrne através de alto-falantes, às vezes por mais de 17 horas seguidas. Além disso, recebiam medicamentos psiquiátricos fornecidos pelo hospital Newhaven, os quais causaram impactos irreversíveis na autoestima e no humor delas. Havia também os tratamentos com choque, com a voltagem a partir de 50 volts, mas podendo aumentar se existisse mau comportamento. Quando atingiam a adolescência, os jovens eram iniciados em um processo que consistia em um estupro coletivo envolvendo os membros do culto, médicos, enfermeiras e até a própria Anne Byrne.
Enquanto todos cresceram bulímicos, autodestrutivos e com tendências de automutilação, Anne Byrne vivia seu sonho perfeito, descendo de seu carro de luxo ao lado de seu terceiro marido, sorrindo e acenando, com várias joias. Ela checava os corpos das garotas como se elas fossem animais à espera do abate, pois os via durante a puberdade como algo nojento. Por isso, ordenava que as "Tias" racionassem os produtos de higiene feminina, pois não queria que elas se tornassem independentes. As garotas eram submetidas a pesagens frequentes e costumavam vomitar antes da medição, para que seus alimentos não fossem racionados.
Foi Sarah Hamilton-Byrne, uma das primeiras crianças do Uptop, que em 1987 denunciou todo o culto para as autoridades depois de ser expulsa por Anne Byrne devido ao seu comportamento incontrolável e após várias tentativas quase destrutivas de contenção. O FBI invadiu o Uptop e realizou o resgate das crianças. Anne e o marido ficaram foragidos por 6 anos e foram presos, processados e condenados só em 1993 — e apenas por crimes de perjúrio e fraude. Os demais crimes não foram contemplados.
Aos 98 anos e com demência avançada, Anne Byrne faleceu em junho de 2019 em uma instituição de idosos. Em uma entrevista, enquanto alisava uma boneca velha, a guru disse: “Eu amava crianças. Fiz tudo por amor”. O resultado desse amor era o retrato de uma família Von Trapp de crianças com ansiedade, síndrome do pânico, depressão, hipervigilância e pensamentos suicidas por trás das roupas, dos sorrisos e dos cabelos iguais. Era o amor de mãe dela. O amor maior que ela pregava. O amor que ela nunca nem conheceu.