Artes/cultura
09/03/2020 às 14:00•5 min de leitura
Por volta de 1845, na Inglaterra, a lei que permitia ao governo erguer instituições para abrigar aqueles que apresentavam transtornos mentais foi um avanço altamente benéfico à sociedade da época, a qual não sabia como nem onde fazer tratamentos. No entanto, na virada do século XIX, os hospitais psiquiátricos que tinham uma malha tímida de pacientes se tornaram verdadeiros "depósitos humanos", onde o governo passou a "despejar" várias pessoas, tivessem distúrbios ou não.
Com isso, os pacientes que realmente precisavam se tratar eram misturados a criminosos, prisioneiros e civis. Dessa forma, no decorrer do tempo, as complicações psicológicas passaram a ser o fator de menos importância no critério de entrada de indíviduos a esses abrigos.
A proliferação de sanatórios gerou carência de recursos, levando os internados à decadência humana, pois eles acabaram se tornando ferramenta de testes nada ortodoxos, com a finalidade de controlá-los. Nesses estabelecimentos, existiam tanto pessoas com transtornos mentais quanto saudáveis, mas estas acabaram, muitas vezes, perdendo-se ou ficando doentes por terem sido transformadas em objetos de estudo.
A terapia eletroconvulsiva (ECT) e lobotomia foram os primeiros métodos que visavam "ajudar" os pacientes a “funcionar” novamente. Porém, por causa desses processos, muitos pereceram e tiveram o cérebro afetado para sempre; na maioria das vezes, isso ocorria pela falta de conhecimento dos médicos ao tratar os clinicamente estáveis com esse tipo de procedimento. A partir disso, tudo piorou.
Os lugares, agora sujos, lotados e repletos de sofrimento, tornaram-se uma viagem sem volta. Experimentos nada humanos e de todos os tipos foram realizados por trás das paredes de centenas de sanatórios. Desde mutilações, tentativas de implantes, recursos engenhosos de sofrimento até outras práticas mais obscuras se espalharam pela sociedade. Ninguém saía com vida dos manicômios e, por isso, as pessoas passaram a temer o que denominavam de "loucura". A selvageria foi atribuída, de forma irreversível, àqueles com transtornos mentais.
O sobrenatural ganhou espaço rapidamente, pois, para a população da época, o psicótico evocava aspectos de natureza espiritual — visto mais como uma condição "da alma" do que da mente —, principalmente com exposições subsequentes que vieram depois da primeira feita por Nelly Bly, em 1887. Os pacientes não só eram usados em tratamentos grotescos como também em rituais pagãos e satânicos.
Em meio a todo esse contexto, estava Bedlam, o "palácio dos lunáticos".
Bethlem Royal Hospital ou St. Mary Bethlem, futuramente mais conhecido como Bedlam, foi construído e fundado em 1247, durante o reinado de Henrique III. O lugar tinha o intuito de ser um convento para arrecadar dinheiro às Cruzadas, devido a isso ficava na paróquia de St. Botolph, onde agora é o canto sudeste da Estação de Liverpool, em Londres.
Por volta de 1330, Bethlem foi convertido a uma espécie de abrigo para pobres e doentes, transformando-se, automaticamente, em um hospital — uma vez que tinha princípio religioso. A escassez de registros e de documentos históricos do período medieval dificulta precisar quando Bedlam se tornou um hospital psiquiátrico. Contudo, alguns relatórios de visitação dos Comissários da Caridade, datados do início dos anos de 1400, apontaram que havia cerca de 6 pacientes indicados como loucos. Além disso, havia também apontamentos de alguns pares de algemas, correntes próximo às camas e outros itens que aparentavam ser de contenção, como cintas de couro e cordas.
Foi dessa forma que Bethlem passou de um simples convento para o primeiro e maior sanatório da história da Europa.
Desordem e confusão foram as palavras que definiram a instituição Bethlem, depois transformada em Bedlam — mais como um palavrão e um anátema do que um apelido. O lugar era uma instituição governamental mal-financiada e se mantinha por meio do dinheiro de doadores particulares dos pacientes, que eram bem poucos em contraste com o crescimento absurdamente rápido da população interna.
Os anos foram cruéis e provaram que ali não tinha mais nada de religioso, como foi panfletado durante a sua criação, mas sim parecia um bueiro onde as pessoas eram abandonadas e mortas pelas condições insalubres ou pelos métodos de “cura” inovadores que os médicos e enfermeiros aplicavam nelas.
Aproximadamente em 1600, o esgoto abaixo do prédio estava quase sempre bloqueado, o que resultava no acúmulo de isujeira nas entradas e formava uma espécie de cascata que regurgitava fezes e outras sujeiras o tempo todo. A água era transportada manualmente da única cisterna desprotegida instalada no quintal da propriedade.
Os doentes considerados mais agressivos ficavam encarcerados em celas que nunca eram limpas. Eles atiravam excrementos para todos os lados, bebiam água contaminada, ingeriam comida apodrecida e exalavam um odor de podridão pelas áreas próximas.
Entre gritos perturbadores emitidos pelas pessoas com graves transtornos mentais dia e noite, Bedlam também era visto como uma rodoviária. Os moradores pobres da região tinham a livre autorização de entrarem e saírem quando quisessem do hospital, tanto quanto os pacientes. Assim, a maioria deles aproveitava para realizar as suas necessidades fisiológicas no local e também aproveitavam o pouco alimento fornecido pelo abrigo.
Entre os anos de 1675-76, o governo britânico reconheceu a profunda necessidade de uma reforma no hospital, porém não para melhorar as condições internas, mas sim a imagem dele. Ele queria impressionar a população, então o topógrafo da cidade, Robert Hooke, foi contratado para fazer o projeto de nova roupagem da instituição. Erguido em Moorfields, com colunatas coríntias, torre com cúpula (inspirada no Palácio das Tulherias, de Louis XIX) e fachada de 165 metros de altura com muros de 210 metros, fechando o espaço como uma fortaleza, sendo comparado ao Palácio de Versalhes. A opulência exagerada o conferiu, durante anos, o título de o único edifício em Londres a se parecer com um palácio.
Em vez de se concentrar em ser um hospital psiquiátrico de qualidade, a intenção foi de ser tanto um centro de caridade e assistência quanto um concorrente imbatível do "mercado de hospícios" em ascensão na época. No final, para os pacientes, apesar de haver acomodações imensas, não tinha infraestrutura adequada para abrigá-los, uma vez que se tratava mais de um hotel do que de um hospital. O necessário era inviável e quase uma raro lá dentro.
Não demorou muito para que Bedlam revelasse a sua verdadeira face. Com uma fachada ornamentada tão pesada, os temporais partiram a parte de trás da estrutura e uma cortina de água se formava diante das portas de entrada toda vez que chovia. Construído nos escombros de uma muralha romana da cidade, o hospital sequer apresentava uma fundação adequada e, em pouco tempo, ele começou a apresentar centenas de rachaduras, que foram receita para um desastre.
Em Bedlam, os tratamentos vieram como resultado do caos intrínseco do hospital, revelando-se ainda pior do que a doença das centenas de pessoas confinadas lá como animais. Os tratamentos mais básicos e comuns incluíam a sangria terapêutica por meio de sanguessugas, banhos de gelo, métodos de inanição, isolamento e também rotinas de espancamentos.
A instituição adotou uma postura tão maníaca e sanguinária que passou a recusar diariamente a admissão de pacientes que acreditavam serem muito frágeis para encarar os métodos de tratamento realizados pelos médicos do local. Um dos mais infames realizados em Bedlam foi intitulado de "Terapia Rotacional". Idealizado por Erasmus Darwin (o avô de Charles Darwin), o procedimento consistia em sentar o paciente em uma cadeira, erguê-lo até o teto e girá-lo em velocidade e tempo estipulados pelo médico. Geralmente, a cadeira costumava atingir a marca de 100 voltas por minuto. O inventor acreditava que os problemas mentais eram curados por meio do sono, e que a indução da vertigem aceleraria o sono resultando em uma melhora. Porém, não foi o que aconteceu em nenhum dos casos.
Em 1790, quando a indústria de roubo de corpos crescia pela Europa por conta da proliferação dos estudos de anatomia, o cirurgião-chefe Bryan Crowther foi levado para integrar a equipe de Bedlam. O homem passou a dissecar os cérebros dos pacientes, alguns enquanto estavam vivos, em busca de mecanismos fisiológicos responsáveis pelas doenças mentais. Embora os seus métodos fossem bestiais e torturadores, o médico fez esse tipo de trabalho por cerca de 20 anos.
Por fim, além de todos os horrores que serviram de inspiração a centenas de hospitais psiquiátricos que surgiram ao redor do mundo, provavelmente o aspecto mais repugnante de Bedlam foi a maneira como ele abria as portas ao público para visitação às dependências fétidas do local, como se ali fosse uma espécie de museu da desgraça alheia.
Para observar o "zoológico humano", os ricos pagavam um guia especializado e responsável por conduzir o visitante nos corredores largos e imundos — com indivíduos escorados nas paredes, morrendo à míngua — até às masmorras, onde outros ficavam acorrentados a argolas de ferro, presos nas úmidas paredes de pedra, emitindo gritos de socorro e de imprecações, refletindo onde estavam e também tudo o que conheciam.