Ciência
13/04/2021 às 15:00•4 min de leitura
Quando Jesse Gelsinger nasceu, em 18 de junho de 1981, em Tucson, no Arizona (EUA), ele já conseguiu o feito de quebrar as expectativas de vida. Aos 2 anos, ele foi diagnosticado com uma versão considerada branda de um raro distúrbio metabólico denominado Síndrome de Deficiência de Ornitina Transcarbamilase (OCTD), uma doença genética do fígado ligada ao cromossomo X, que consiste na incapacidade de metabolizar a amônia (um subproduto da degradação de proteínas), que atinge níveis letais no sangue.
O caso é considerado fatal logo ao nascimento, com a maioria dos bebês entrando em coma e sofrendo danos cerebrais irreversíveis. O índice de mortalidade aponta morte em no mínimo 1 mês de vida. Contudo, Gelsinger teve a sorte de o gene da ornitina transcarbamilase ter sofrido mutação em apenas algumas partes de suas células, em uma condição conhecida como mosaicismo somático.
(Fonte: Jesse Gelsinger/Reprodução)
Para sobreviver de maneira saudável com sua doença, Gelsinger se mantinha vivo com uma dieta extremamente pobre em proteínas e um regime de aproximadamente 50 comprimidos diários de medicação especial.
Ele era conhecido por ser um jovem perspicaz, querido, doce e que nutria uma paixão incontrolável por luta livre profissional e motocicletas. Em 1999, quando estava no auge de sua adolescência, aos 18 anos, Gelsinger perdeu um pouco o controle de si mesmo e de sua doença, pois a rebeldia da fase o deixou “de saco cheio” de toda a dieta e medicação regradas.
Isso levou o jovem a ter crises de saúde que colocaram sua vida em risco. Ele parou de tomar seus remédios, passou a ingerir comida em excesso e acabou sendo encontrado no sofá de sua casa por seu pai, vomitando incontrolavelmente. No mesmo dia, Gelsinger teve de ser intubado e mantido em coma induzido até que seus níveis de amônia estivessem sob controle.
(Fonte: Wikipedia/Reprodução)
Após ser extubado e ter mais uma chance de continuar vivendo, Gelsinger recebeu a notícia de seu médico de que um ensaio clínico para um potencial tratamento de OTCD estava sendo desenvolvido por pesquisadores da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia. O procedimento visava corrigir o gene OTC, que produz uma enzima que impede o acúmulo de amônia no sangue.
Os pacientes que se submetessem à experimentação teriam injetadas cópias funcionais do gene que havia sido anexado a um adenovírus (um tipo de vírus do resfriado) alterado para ser inofensivo que infectaria as células do fígado do paciente e integraria o gene adicionado em seu DNA cromossômico.
Em linhas gerais, Gelsinger estaria sendo submetido a uma terapia de gene.
(Fonte: NHGRI/Reprodução)
Mais amplamente explorada durante a década de 1970, a terapia gênica é considerada um verdadeiro “sonho científico” para tratar pessoas com doenças genéticas, inserindo um gene nas células de um paciente em vez de usar medicamentos ou cirurgia. Desde aquela época, os cientistas têm tentado várias abordagens para o procedimento, incluindo substituir um gene mutante que causa a doença por uma cópia saudável dele, inativando ou “eliminando” o gene mutado que está funcionando incorretamente ou até mesmo introduzindo um novo no corpo para ajudar a combater a doença.
Na época em que Gelsinger foi informado sobre as possibilidades de uma cura no futuro, o tratamento experimental havia prolongado a vida somente de ratos de laboratório criados para serem deficientes em enzimas OTC. Portanto, os cientistas estavam confiantes de que o método de reparo de genes que eles estavam testando pudesse ser usado para tratar várias doenças hepáticas.
A princípio, o teste ao qual o jovem foi submetido era considerado um estudo de segurança, com o objetivo de apenas aprimorar e avançar o tratamento para bebês com a mesma doença que ele, e não melhorar sua saúde. Apesar disso, Gelsinger quis participar, portanto voou direto para a Filadélfia em setembro de 1999.
(Fonte: Science History Institute/Reprodução)
Em 13 de setembro de 1999, Gelsinger foi o 18º paciente a receber o adenovírus modificado. Pacientes anteriores a ele no estudo experimental sentiram apenas sintomas semelhantes aos da gripe, porém o jovem teve uma reação muito pior. Em menos de 1 dia, ele ficou desorientado, apresentou sinais de icterícia (pele amarelada devido ao acúmulo de bilirrubina no sangue) e, em seguida, a resposta inflamatória do seu organismo o levou a desenvolver um perigoso distúrbio de coagulação do sangue, causando insuficiência renal, hepática e pulmonar.
Quatro dias depois de ter a primeira dose injetada, Gelsinger teve os aparelhos desligados após ser declarada a sua morte cerebral. Tanto a equipe médica quanto os cientistas se mostraram surpresos com a maneira como o quadro do jovem piorou tão rapidamente, culminando em seu óbito quase imediato.
A morte de Gelsinger, um paciente considerado estável e saudável, em um tratamento experimental voluntário de terapia gênica, causou um verdadeiro colapso no campo de estudo e na área de pesquisa biológica. A maioria dos veículos de imprensa definiu os pesquisadores como “ambiciosos demais”, cuja ansiedade os levou a tomar atalhos que desrespeitavam as regras destinadas a proteger as pessoas em vez de colocar suas vidas em risco. A família de Gelsinger alegou que eles não foram devidamente alertados sobre os problemas imediatos à transfusão e nem a longo prazo.
(Fonte: WHYY/Reprodução)
“O que aconteceu com o jovem fez todo o campo da terapia gênica desaparecer por pelo menos 10 anos. Até mesmo o termo ‘terapia genética’ se tornou uma espécie de anátema”, comentou a bioquímica Jennifer Doudna, responsável por descobrir o mecanismo de edição de genes CRISPR-Cas9. “Ninguém queria doar para as pesquisas, tampouco algum pesquisador poderia ter seu nome vinculado ao termo”.
A investigação do Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos apontou que os cientistas envolvidos no caso de Gelsinger, inclusive James Wilson, então diretor do Instituto de Terapia Genética Humana, quebraram diversos protocolos de conduta do experimento, como: inclusão de Gelsinger como substituto de outro voluntário que desistiu, apesar de ele ter altos níveis de amônia que deveriam tê-lo impedido de participar; falha da universidade em alertar que dois pacientes já haviam experimentado efeitos colaterais graves; e não ter informado na documentação de consentimento as mortes de macacos que receberam o tratamento.
A Universidade da Pensilvânia e o Centro Médico Nacional Infantil tiveram de pagar mais de US$ 500 mil ao governo como forma de indenização pelas quebras de diretrizes do procedimento.
(Fonte: WHYY/Reprodução)
Após o revés do caso, o campo de estudo de terapia gênica levou 20 anos para se reestabelecer, com empreendimentos públicos e privados investindo bilhões de dólares para alternar ou substituir genes defeituosos nas pessoas e promover melhores chances de vida, ou uma vida saudável, aos pacientes.
Contudo, até então, só foi possível comercializar medicamentos, terapias para linfoma, tratamento que reverte uma forma de cegueira hereditária e terapia para atrofia muscular espinhal.
De acordo com os cientistas, a atual terapia genética é mais segura do que a do passado, porém ainda existem muitas questões acerca dos riscos do procedimento e do quão seguro é.