
Ciência
01/04/2023 às 11:00•3 min de leitura
Assim como toda a insalubridade, morte, medo e situação de desolamento que assolou os britânicos nas trincheiras em 1914, o mesmo aconteceu com os soldados norte-americanos na década de 1950 com o envolvimento dos Estados Unidos nos conflitos bélicos da Ásia, como a Guerra do Vietnã e a Guerra da Coreia.
Pela primeira vez em muito tempo, os soldados norte-americanos tiveram contato com a necessidade de desertar, abandonando princípios considerados fundamentais do patriotismo que permeia todos os aspectos da sociedade dos EUA, sobretudo em uma época em que havia a forte ideia de que isso era o que havia levado a nação até onde estava.
Essa é a história de como um desertor suicida inventou a varfarina, o fármaco que impede coágulos e também salvou a vida do presidente Dwight Eisenhower.
(Fonte: Keir Morse/Reprodução)
Um soldado da Marinha deu entrada no Hospital Naval da Filadélfia, EUA, em 4 de abril de 1951, com o nariz jorrando sangue e sentindo dores abdominais fortíssimas. Aquele estado acendeu nos médicos a possibilidade de que o trauma tinha algo a ver com envenenamento – e eles estavam certos, afinal, o país estava em meio a Guerra da Coreia, e atitudes de desertar como aquela eram cada vez mais comuns.
No entanto, o recruta acabou se arrependendo de sua decisão no meio do processo, mas já havia ingerido o veneno de rato. A carga que o homem tomou era o bastante para matá-lo assim que entrasse em contato com seu organismo, no entanto, só o fez se contorcer de dor – o que duraria quatro longos dias.
(Fonte: Wikimedia Commons)
O homem não morreu porque recorreu à substância varfarina, que diminui a capacidade do corpo humano de coagular o sangue. O agente tóxico incolor e inodoro, um notório veneno que além de afetar o gado, é usado para matar morcegos-vampiros e ratos ao forçar uma hemorragia interna, faz parte de uma poderosa família de anticoagulantes naturais.
Ela foi encontrada acidentalmente por fazendeiros que não entendiam o motivo de seu gado sangrar até a morte ao comer trevo-de-cheiro (Melilotus indicus) estragado.
Acontece que, quando o mofo impregna a planta, consegue reprogramar um determinado produto químico nela. Sendo assim, enquanto em animais o anticoagulante os mata, em humanos evita que o sangue coagule em situações de risco. A capacidade da planta foi usada para essa finalidade durante as cirurgias dos soldados da Segunda Guerra Mundial.
Dwight Eisenhower. (Fonte: NPS/ENHS/Reprodução)
Quando os pesquisadores da Wisconsin Alumni Research Foundation faziam testes para encontrar mais versões dos anticoagulantes com base na substância química do trevo, descobriram o composto que apelidaram varfarina, que se provou muito útil para matar ratos.
Não demorou muito para os EUA usarem a substância no controle de pragas enquanto pesquisas ainda eram feitas sobre o desempenho de suas propriedades em contato com o sangue humano. Depois que o soldado arrependido chegou até um hospital com o estômago cheio do composto, ele só não morreu porque seu quadro pôde ser revertido com vitamina K, que atua na coagulação sanguínea ao estimular o processamento de importantes proteínas no organismo.
Apesar de um ato impensado, foi assim que estudos começaram a ser feitos com base nos efeitos da varfarina no corpo humano, descobrindo que, além de prevenir coágulos sanguíneos fatais, a substância pode também restaurar o fluxo sanguíneo em vítimas de derrame.
(Fonte: Getty Images)
Com isso, um remédio foi formulado e rapidamente aprovado pelo Food and Drug Administration (FDA) para seu uso no tratamento de coágulos sanguíneos, que aconteceu da forma mais emblemática o possível, na sexta-feira de 23 de setembro de 1955, enquanto o então presidente dos EUA, Dwight Eisenhower, visitava amigos e familiares em Denver.
Em um instante o chefe de Estado estava bebendo e conversando, no outro já estava no chão, arrebatado por um infarto do miocárdio que, a princípio, ele atribuiu o desconforto que sentia ao hambúrguer que havia comido no almoço.
Temendo que os coágulos errantes pelo corpo do presidente pudessem causar um derrame, levando-o ao óbito ou o incapacitando, os médicos administraram a Eisenhower uma dose da recém-aprovada varfarina. Em poucas horas, o presidente estava bem e teve uma recuperação mais rápida do que imaginavam.
Naquele dia, o curso da história mudou porque um aspirante a marinheiro tomou uma atitude impensada 4 anos antes, e a ciência pôde vasculhar o caso e descobrir que um veneno podia salvar vidas.