Artes/cultura
05/03/2024 às 20:00•3 min de leituraAtualizado em 06/03/2024 às 14:12
A doença hepática se tornou uma pandemia. Estima-se que 1 em cada 25 mortes no mundo são devido a problemas relacionados ao fígado, contabilizando uma média de 2 milhões de mortes anuais. Cerca de dois terços das mortes por doença hepática ocorrem em homens, grande parte em decorrência de complicações de cirrose e carcinoma hepatocelular, sendo a hepatite aguda responsável por uma proporção menor dos óbitos.
Desde meados da década de 1950 que os médicos atribuem as causas mais comuns de cirrose ao álcool, depois vieram as hepatites virais e doença hepática gordurosa não alcoólica. Globalmente, 43% da população consome álcool, considerando que seu consumo abusivo é um importante fator de risco para doenças, incapacidade e mortalidade.
Os países de alta renda são os que mais sofrem com a falência hepática por álcool, e a doença hepática gordurosa não alcoólica que afeta um quarto da população global é a segunda causa de doença hepática terminal e motivo de transplantes de fígado na Europa e na América.
Além disso, a cirrose também é uma doença extremamente cara. Só nos Estados Unidos, em 2016, um levantamento mostrou que os gastos relacionados ao fígado foram de US$ 32,5 bilhões, com dois terços desses custos atribuíveis a pacientes hospitalizados ou ao departamento de emergência.
Com o consumo de álcool em uma crescente vertiginosa, associado ao envelhecimento da população em geral e ao aumento da prevalência de fatores de risco metabólicos, prevê-se um aumento na falência hepática nas próximas décadas. Enquanto isso, segundo a Administração de Recursos e Serviços de Saúde dos EUA, 10.500 pessoas estão na fila para um transplante de fígado, sendo que 17 pessoas morrem a cada dia à espera do órgão.
Uma vez que esse número excede em muito o número de fígados de doadores falecidos disponíveis, a espera se tornou mais um flerte com a morte do que com a esperança. Pensando nisso, cientistas estão aprimorando técnicas e conseguiram usar um fígado de porco geneticamente modificado em um corpo humano.
No começo de janeiro desse ano, cirurgiões da Universidade da Pensilvânia emitiram um comunicado à imprensa informando que anexaram com sucesso pela primeira vez na história um fígado de porco geneticamente alterado a uma pessoa com morte cerebral e descobriram que o órgão funcionou normalmente durante 72 horas.
O experimentou foi recebido com comoção pela comunidade médica, visto que representa não só um passo imenso em direção ao uso dos órgãos de porcos para transplante, como também no potencial alívio do sistema de doação de órgãos.
Os pesquisadores por trás do experimento acreditam que o fígado de porco também pode ser usado para estabilizar pacientes que precisam de um transplante e aguardam um doador, evitando a piora de seu quadro clínico. No caso daqueles pacientes que só precisam que os próprios fígados se recuperem, o órgão do animal poderia oferecer apoio temporário, evitando a necessidade de um transplante no futuro.
O fígado é o maior órgão do corpo, responsável por realizar muitas funções vitais, como produção de bile, necessária para digerir os alimentos; conversão de amônia tóxica em uma substância que pode ser excretada pela urina; bem como regula a coagulação do sangue e o nível de açúcar, removendo resíduos e ajudando a combater infecções.
O procedimento experimental consistiu em manter o paciente em ventilação mecânica após ter sido determinada a morte encefálica. O fígado da pessoa foi preservado enquanto o do porco foi colocado fora do corpo em um dispositivo chamado máquina de perfusão. Os tubos circularam o sangue de uma veia na virilha do paciente para o fígado de porco na máquina, devolvendo o sangue para uma veia no pescoço do paciente.
Ao longo de 3 dias, o fígado do porco não só produziu bile e manteve a acidez sanguínea normal no corpo do paciente, que permaneceu em uma condição estável, como também surpreendeu os médicos por parecer em ótimo estado mesmo após tantas horas.
Desde 1960 que cientistas procuram usar animais como uma forma de aliviar a escassez de órgãos humanos para transplante, um processo chamado de xenotransplante. Os porcos sempre foram explorados como doadores em potencial porque estão prontamente disponíveis e possuem a anatomia de tamanho semelhante aos órgãos dos humanos, apesar de não serem naturalmente compatíveis. Por essa razão, eles são rapidamente rejeitados pelo sistema imunológico humano se forem transplantados diretamente no corpo. Isso ainda pode acontecer com o órgão do porco fora do corpo humano, visto que anticorpos no sangue podem reconhecê-lo como estranho e tentar atacá-lo.
Alterar geneticamente o fígado do porco foi a alternativa que os pesquisadores da Universidade da Pensilvânia encontraram para tentar tornar o órgão mais parecido com o humano. Com a ajuda da empresa de biotecnologia eGenessis, de Cambridge, eles realizaram 68 edições genéticas no animal, desativando os três genes do fígado do porco para evitar a rejeição imunológica imediata do paciente, inserindo sete genes humanos envolvidos no processo de inflamação, imunidade e coagulação do sangue. As demais edições focaram em desativar vírus inatos encontrados no genoma do porco que poderiam infectar o paciente.
Considerando que os pesquisadores conseguiram transplantar um rim de porco com as mesmas edições em um macaco, e que funcionou por mais de 2 anos, eles confiam que em breve os humanos poderão se beneficiar dos avanços.
A equipe da Penn ainda planeja refinar o procedimento em mais três pessoas com morte cerebral. Mike Curtis, CEO da eGenesis, também se reunirá com o Food and Drug Administration (FDA) para discutir planos para um teste de fase inicial para usar seu sistema suíno em pacientes com insuficiência hepática.