Ciência
24/01/2022 às 11:00•3 min de leitura
Se você já prestou atenção recentemente nos conteúdos de comportamento que circulam pela internet, vai notar algo em comum: eles tendem a creditar o segredo de uma boa vida à autoconfiança.
É comum na imprensa feminina, por exemplo, que os discursos empoderadores estimulem mulheres a se amarem e a amarem seus corpos. Nos textos feitos por coaches, a prerrogativa é o do “seja f*da”, isto é, acredite no seu próprio valor. Até nos manuais dedicados aos pais, há o incentivo para que se crie filhos autoconfiantes e independentes.
Esse estímulo à autonomia pode, em si mesmo, configurar como um subproduto do capitalismo. Isso porque, ao reconhecer que as pessoas estão redescobrindo o feminismo, lutando pela igualdade entre raças e outras formas de empoderamento, as empresas se viram quase como obrigadas a capitalizar esse discurso.
Essa discussão é a tônica do livro Confidence Culture (Cultura da confiança, em tradução livre), das sociólogas Shani Orgad e Rosalind Gill, ambas da University of London, que está sendo lançado neste mês.
As duas pesquisadoras criaram o conceito juntas ao analisar os modos pelos quais a desigualdade entre gêneros estava sendo reconfigurada a partir da ideia da confiança feminina. O discurso de "confie em si mesma", muitas vezes, começou a aparecer em campanhas publicitárias que marcaram época e se tornaram clássicas, como a Beleza Real, da Dove.
“Onde quer que você olhe – na publicidade sobre a imagem corporal, em livros sobre como ser uma boa mãe, aconselhamento sexual e em relacionamento, e talvez especialmente em relação ao local de trabalho –, há uma ênfase realmente dramática sobre a autoconfiança feminina”, afirmou Gill em entrevista à revista Matrizes, da USP.
Em seu livro, as sociólogas esclarecem que não estão criticando a confiança em si, mas a cultura que se cria em torno dela, ou seja, a fetichização da ideia de confiança e uso disso para fins comerciais. Além disso, o foco no individual (na confiança pessoal do indivíduo) acaba por deslocar o problema de seu lugar estrutural.
“Embora, em um nível, não haja nada errado com isso [ser confiante], o problema dessa rígida ênfase na confiança é que ela desloca todas as questões sobre por que isso deve ser assim e, implicitamente, coloca a culpa nas mulheres por sua suposta falta de confiança interna, responsabilizando-as pelo próprio trabalho de se tornarem sujeitos mais confiantes”, explicou Gill.
O livro ainda esclarece que a ideia da confiança se tornou uma espécie de culto – transformou-se em algo que se relaciona ao campo da fé. “É como um culto por conta da forma como foi colocado além do debate: quem poderia ser contra a confiança? Ninguém poderia argumentar contra isso porque é dado como tão certo. Acho que é bom desconfiar das coisas que são colocadas naquele espaço onde não podem ser interrogadas”, pontuou Gill em entrevista ao portal Vox. Sendo assim, por seu caráter impositivo, o “culto da confiança” acaba por se tornar mais negativo do que positivo.
As sociólogas Shani Orgad e Rosalind Gill. (Fonte: Financial Times)
Orgad e Gill ainda denunciam que a popularização de livros muito vendidos, que também operam a partir desse culto – best-sellers como A arte sutil de ligar o f*da-se, de Mark Manson, e A coragem de ser imperfeito, de Brené Brown – acabam por vender autoajuda por meio de um discurso de “antiautoajuda”.
“[São obras] sobre olhar para dentro. É sobre você, como pessoa, devia estar trabalhando em si mesmo, reconhecendo como está enfrentando vulnerabilidade. Não é correspondido por nenhum apelo, por exemplo, para investir no desenvolvimento de uma comunidade que apoie os vulneráveis”, explicou Orgad.
Portanto, esse tipo de autoajuda individualiza ao personalizar os conflitos e sugerir que as ações estejam apenas no plano do individual, acabam desestimulando que as pessoas pensem no coletivo ou pelo menos se coloquem no lugar de qualquer sujeito que não esteja em "sua bolha".
“Em última análise, [o culto à confiança] torna-se mais um local de privilégio, porque pessoas muito específicas podem se dar ao luxo de ser e serem vistas como vulneráveis”, arrematou Orgad ao portal Vox.