Ciência
25/04/2023 às 10:00•3 min de leitura
Isso não deve causar surpresa para quem já é crítico da relação entre religião e política. Mas é interessante observar o que uma pesquisa efetivamente demonstrou: a fé das pessoas e os preceitos religiosos têm sido usados, em várias ocasiões, para suporte a regimes ditatoriais ou violar direitos humanos.
Apesar das inúmeras evidências empíricas, havia pouca pesquisa sistemática e com todo rigor científico para analisar esse fenômeno. Essa foi a motivação dos cientistas Jeanet Bentzen, da Universidade de Copenhagen, e Gunes Gokmen, da Universidade de Lund (Suécia). Então, os dois compararam fatos históricos de 1.265 sociedades pré-modernas com evidências sobre as leis atuais de 176 países.
Essa influência da religião no cerceamento da liberdade pode ser encontrada desde o famoso Código de Hamurabi — um dos primeiros textos legais do qual se tem registro, datado de 1750 anos a.C. Logo no início, o rei babilônico Hamurabi é identificado como legítimo representante dos deuses na Terra. Suas leis, portanto, seriam ordens divinas.
Esse é um grande exemplo do que os pesquisadores chamam de "legitimação divina". Ou seja, justificar as leis como ordens dos deuses. É possível observar isso até hoje em diversos países que usam a Sharia (lei islâmica), inclusive para condenar pessoas à morte. E mesmo em países de maioria cristã, que baseiam leis na Bíblia para reprimir direitos humanos.
Muitos países utilizam a lei islâmica ou a Bíblia cristã para reprimir direitos humanos (Fonte: GettyImages)
A professora Jeanet Bentzen explicou que comparou informações de sociedades semelhantes, que estão no mesmo grupo linguístico, têm o mesmo nível de desenvolvimento e se localizam no mesmo continente. Mesmo observando tais semelhanças, a religião faz bastante diferença para o nível de desigualdade social.
Em resumo, a professora explica que sociedades com maior desigualdade social costumam adorar a deuses com personalidades dominantes. "Em média, deuses moralizadores tem 30% a mais de probabilidade de aparecer em sociedades com grandes diferenças sociais, quando comparadas com sociedades mais igualitárias", exemplifica Bentzen, em nota.
Até porque os deuses moralizadores e punitivos são mais eficientes para controlar um povo, enquanto os espíritos que não podem punir ou interferir nas ações humanas auxiliam pouco nesse objetivo. Além disso, as sociedades que acreditam nesse tipo de divindade tendem a discriminar ou favorecer certos grupos da sociedade: da restrição de direitos das mulheres à proibição da homossexualidade, além de leis rígidas contra blasfêmia.
Nesse ponto, é importante explicar que o estudo não pretende demonizar as religiões — mas demonstrar seu uso político, de forma objetiva, e fazer um alerta contra novos usos da fé para dar suporte à autocracias e retirada de direitos.
Na verdade, a professora Jeanet Bentzen comenta que há muitos estudos que comprovam os benefícios da religião para os seres humanos, como conforto pessoal, senso de comunidade e esperança. Contudo, "para os legisladores, ela pode ser uma ferramenta para ganhar um poder inquestionável", afirma.
A religião é cooptada por líderes populistas e autoritários para justificar seu regime (Fonte: GettyImages)
Os resultados do estudo demonstram que os regimes autocráticos — isto é, governos em que uma pessoa ou um seleto grupo de pessoas detém todo o poder — tendem a institucionalizar as religiões. É um meio de legitimar e assegurar seu poder. Algo que, como dissemos acima, existe desde o Código de Hamurabi, mas persiste até hoje.
"A legitimação divina da concentração de poder em um grupo muito pequeno de pessoas pode dar suporte à persistência de autocracias. Afinal, o pequeno grupo de governantes recebe seu mandato dos céus e, por isso, não precisa perguntar nada às pessoas", explica a cientista.
Isso ocorre em uma via de mão dupla, enquanto os regimes autocráticos fortalecem as instituições religiosas para justificar seu regime e solidificar sua posição de poder. Em vista disso, a pesquisa também apresenta esse alerta contra novas tentativas — ainda mais em um mundo onde o populismo religioso se torna cada vez mais popular.
Sendo assim, por mais que a religião tenha aspectos positivos para a sociedade, devemos prevenir que líderes populistas cooptem a fé das pessoas para fins políticos. Especialmente quando o objetivo final é restringir os direitos e a liberdade da população.