Ciência
29/09/2023 às 14:00•4 min de leitura
Para entender como uma partida de futebol classificatória para a Copa do Mundo do México de 1970 causou uma guerra entre El Salvador e Honduras, é preciso entender de onde surgiu o problema entre os dois países.
Em 1969, El Salvador, localizado na América Central, tinha uma população de apenas 3 milhões de habitantes (hoje tem o dobro disso), e a maioria de seu território era controlada por uma elite latifundiária, deixando pouco espaço para os agricultores mais pobres. Estes apoiavam a emigração em massa, que aliviava as pressões sobre suas terras e exigia que elas fossem redistribuídas.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Com isso, os migrantes encontraram em Honduras — a 325 km de distância de El Salvador, um território cinco vezes maior e com uma população de apenas 2,3 milhões de habitantes — o local perfeito para cultivar terras e trabalhar para as empresas de frutas dos Estados Unidos que operavam no país. Naquela época, Honduras era igualmente dominado por um pequeno número de proprietários de terras.
Estima-se que 300 mil salvadorenhos viviam em Honduras em meados de 1969 e essa "invasão" toda e apropriação das terras começou a despertar um ressentimento entre os camponeses hondurenhos que lutavam por mais terras da elite.
(Fonte: War History Online/Reprodução)
Para tentar aliviar as tensões, o então presidente hondurenho Oswaldo López Arellano aprovou uma lei de reforma agrária, mas não nas terras de propriedade da oligarquia ou das empresas de frutas norte-americanas, mas naquelas colonizadas pelos migrantes. Além disso, Arellano começou a deportar milhares de salvadorenhos ou encarcerá-los em campos de contenção, tirando tudo o que possuíam.
El Salvador, por outro lado, foi dominado por um caos. O governo de Fidel Sánchez Hernández simplesmente não sabia como lidar com o grande número de migrantes que retornavam para um país pequeno e sem terras o suficiente, tampouco com aqueles que ficaram e passaram a exigir uma ação militar para aquela situação.
E em meio a um sentimento de extremo ódio dos migrantes salvadorenhos por Honduras, simplesmente havia os três últimos jogos classificatórios para a Copa do Mundo de 1970, que aconteceria no México. Qualquer um que conhece o quanto a América Latina é apaixonada por futebol sabe o que isso significa.
Até era esperado um embate perigoso entre as torcidas, mas ninguém esperava que isso fosse muito além.
(Fonte: Exclamacion/Reprodução)
Em 8 de junho de 1969 aconteceu o primeiro desses jogos eliminatórios em Tegucigalpa, capital de Honduras, sob um clima de tensão, afinal, havia uma imensa pressão para que os salvadorenhos vencessem.
“Sentimos que tínhamos o dever patriótico de vencer por El Salvador”, disse o jogador Maurício “Pipo” Rodríguez. “Acho que todos nós tínhamos medo de perder, porque teria sido uma desonra que nos acompanharia pelo resto da vida. O que não sabíamos era o significado daquela vitória e a importância histórica daquele gol – que seria usado como símbolo de uma guerra”.
El Salvador perdeu a primeira partida, com Honduras conseguindo uma vitória por 1 a 0 no minuto final do segundo tempo. A violência entre os torcedores foi controlada naquele dia, apesar dos inúmeros relatos de brigas e pessoas sendo carregadas para hospitais próximos.
(Fonte: We Are The Mighty/Reprodução)
O mesmo não aconteceu em 15 de junho, quando El Salvador ganhou por 3 a 0. Saques e incêndios criminosos abalaram as ruas em uma atmosfera de puro terror e revolta. Em 24 de junho, o governo salvadorenho mobilizou seus militares e, dois dias depois, declarou estado de emergência.
Antes de as seleções entrarem em campo na Cidade do México, em 27 de junho, foi anunciado oficialmente que El Salvador havia cortado os laços diplomáticos com Honduras, alegando que, desde o primeiro jogo, mais de 11 mil salvadorenhos foram forçados a fugir de Honduras.
O presidente Hernández declarou que o país não fez nada para impedir assassinatos, opressão, estupros, pilhagens e a expulsão em massa de seu povo de Honduras. Portanto, não havia muito sentido em manter as relações. Era o início declarado da guerra.
(Fonte: Difesa Online/Reprodução)
Naquele último jogo, a guerra rompeu assim que o árbitro soprou o apito final para encerrar a partida, com El Salvador vencendo Honduras por 3 a 2 após a prorrogação. Estima-se que mais de 1.700 policiais mexicanos compareceram ao jogo para tentar controlar a violência e os torcedores salvadorenhos que gritavam “assassinos” das arquibancadas para os hondurenhos.
Em 14 de julho, El Salvador ordenou que suas forças invadissem Honduras com aviões de guerra para bombardear o país. No final da tarde daquele dia, a força aérea salvadorenha atacou vários alvos, lançando grandes ofensivas ao longo da estrada principal que liga as duas nações e contra as ilhas hondurenhas no golfo de Fonseca.
El Salvador até liderou o conflito, pelo menos a princípio, sobretudo porque seu exército era consideravelmente maior e mais bem equipado do que o do seu oponente. No entanto, seu ataque travou devido à escassez de combustível e munição, fruto da ação da força aérea hondurenha que, além de destruir grande parte da força aérea salvadorenha, danificou severamente as instalações de armazenamento de petróleo de El Salvador.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
No mesmo dia, a Organização dos Estados Americanos (OEA) pediu um cessar-fogo, que só foi ouvido pelos salvadorenhos implacáveis em 18 de julho. A essa altura, mais de 6 mil pessoas haviam morrido, em sua maioria civis hondurenhos, e uma média de 130 mil salvadorenhos haviam sido expulsos de Honduras. Sob pressão internacional, El Salvador retirou suas forças do país oponente em agosto.
Além das vítimas, a guerra só serviu para esfacelar as economias de ambos os países, que sofreram terrivelmente com as consequências, pois o comércio foi interrompido e as fronteiras fechadas. Inclusive, a maioria das questões socioeconômicas que surgiram no final da Guerra do Futebol foram a causa final da Guerra Civil de El Salvador, que aconteceu de 1979 a 1992, em que mais de 70 mil pessoas morreram durante o conflito.
Aos 78 anos, Pipo segue acreditando que as autoridades e os políticos usaram o futebol para incitar o ódio entre os salvadorenhos e hondurenhos que, naquele contexto, eram apenas rivais esportivos, não inimigos. E que a mídia internacional estigmatizou o futebol como o objetivo que iniciou o conflito.
“A guerra teria acontecido com ou sem esse objetivo”, observou ele.