Artes/cultura
14/11/2024 às 21:00•3 min de leituraAtualizado em 14/11/2024 às 21:00
Em 1917, uma história macabra cruzou fronteiras e inflamou corações durante a Primeira Guerra Mundial: a Alemanha estaria usando os cadáveres de seus próprios soldados para fabricar produtos como sabão e velas. Segundo relatos, fábricas chamadas Kadaververtungsanstalten (Fábrica de Utilização de Carcaças) realizavam o processo sinistro, transformando a gordura dos mortos em materiais úteis para o esforço de guerra.
A ideia de uma “fábrica de cadáveres” onde corpos de soldados eram reutilizados chocou o mundo e se tornou símbolo da crueldade atribuída aos alemães. Mas a verdade era bem diferente: o que parecia um caso real era, na verdade, uma propaganda que explorava o medo e a desinformação.
Os rumores sobre o uso de cadáveres para extração de glicerina começaram a circular em 1915, quando o desgaste da guerra aumentava a demanda por recursos, e a Alemanha sofria com a escassez de matérias-primas. Logo, a imprensa britânica e francesa explorou o boato.
Charges políticas, como as da revista Punch, retratavam o Kaiser Wilhelm II afirmando que soldados mortos ainda seriam úteis para a Alemanha, ilustrando a acusação. Outros veículos, como o jornal belga L'Indépendance Belge (A Independência Belga, em tradução livre), também relataram encontros fictícios e descreveram detalhadamente a chamada "fábrica de cadáveres" e seus processos horripilantes.
Pouco depois, o The Times e o Daily Mail britânicos seguiram a narrativa com descrições ainda mais sinistras, envolvendo trens carregados de corpos nus e cenas de trabalhadores processando os corpos com equipamentos especiais.
Apesar de o governo alemão ter tentado desmentir a história, explicando que a palavra “Kadaver” em alemão se refere a carcaças de animais e não a corpos humanos, as nações aliadas se aproveitaram da ambiguidade para reforçar o rumor. A campanha foi bem-sucedida: as acusações de que a Alemanha usava cadáveres em sua indústria de guerra uniram as nações aliadas, alimentando o ódio público e o desejo de vitória.
Na China, por exemplo, o horror generalizado frente à suposta atrocidade alemã contribuiu para a entrada do país na guerra ao lado dos Aliados em agosto de 1917. As imagens e relatos macabros causaram impacto especialmente entre as famílias de soldados que perderam filhos no campo de batalha, intensificando o ódio e o repúdio aos inimigos.
Anos depois, já na década de 1920, a origem da história veio à tona. Em um jantar privado, o brigadeiro britânico John Charteris, ex-chefe da inteligência militar, supostamente admitiu que a história havia sido fabricada como uma tática de guerra psicológica para manipular a opinião pública e convencer a China a apoiar os Aliados.
Charteris teria trocado as legendas de fotos de soldados mortos e carcaças de animais para sugerir que a Alemanha estava transformando seus próprios homens mortos em produtos de guerra. Embora ele mais tarde negasse a confissão, a suspeita sobre a origem propagandística da história foi suficiente para irritar o público britânico, que se sentiu enganado.
A divulgação da “fábrica de cadáveres” é um dos primeiros exemplos de como a propaganda pode distorcer a realidade, explorar a fragilidade emocional em tempos de guerra e usar o sensacionalismo para alimentar hostilidades. Na época, muitos jornais se recusaram a questionar a veracidade da história, preferindo publicá-la para satisfazer o desejo do público por narrativas que reforçassem a posição moral das potências aliadas.
A repercussão foi tanta que, mesmo após o desmentido, o mito permaneceu vivo e, com o passar das décadas, foi reavivado por negacionistas do Holocausto para questionar a veracidade das atrocidades nazistas.
Essa história de horror imaginário ilustra o poder das fake news em moldar a percepção pública e sua persistência, mesmo após serem desmentidas. Falsos relatos, como o da fábrica de cadáveres, mostram que a guerra da informação é uma arma poderosa, manipulando corações e mentes em prol de interesses específicos — uma lição que ressoa até hoje, em tempos de disputa constante entre verdade e mentira.