Ciência
21/08/2022 às 10:00•3 min de leitura
Em 29 de setembro de 2008 ia ao ar pelo canal The Learning Channel (TLC), da televisão norte-americana, o programa 19 Kids and Counting, um reality show que apresentava a família Duggar, composta por Jim Bob, Michelle Duggar e seus 19 filhos, dos quais 9 são mulheres e 10 homens.
Foi a primeira vez que os telespectadores dos Estados Unidos – e o mundo todo, posteriormente – tiveram contato com a filosofia controversa e problemática do movimento Quiverfull.
Apesar de os Duggar alegarem que não fazem parte da seita, eles pregam tudo aquilo que a filosofia dela sustenta, como a negação do controle de natalidade sob a crença de que Deus determina quantos filhos uma mulher deve ter; educar seus filhos em casa e sem acesso ao entretenimento, como televisão e internet; e encorajar o namoro acompanhado, no qual um casal só pode se conhecer em um ambiente de grupo. Além disso, a família também obedece uma estrutura hierárquica masculina de extrema conformidade familiar em que as mulheres ainda desempenham papéis de submissão.
Ao longo dos 7 anos que o programa ficou no ar, as pessoas passaram a desprezar a família conservadora e seus princípios autodenominados “de acordo com Deus”, abrindo um imenso debate sobre a problemática envolvendo o movimento Quiverfull e todos os tipos de abuso espiritual que o cerca.
(Fonte: TLC/Reprodução)
No artigo "What It’s Like to Escape the Christian Fundamentalist 'Quiverfull' Movement", da Vice, a jornalista Tiffy Thompson entrevistou a ex-ativista do Quiverfull, Vickie Garrison, que explicou que, embora existam autores e palestrantes influentes no movimento, não há um líder central. Seguindo a ideia de um patriarcado cristão, em que o homem é o esteio da família e o provedor, ele exerce sua função de ser a própria estrutura de poder que controla tudo sobre a vida dos membros de uma família.
Garrison disse que as crianças são educadas em casa e casadas muito cedo – até demais – para que possam gerar filhos quanto antes e criá-los em tempo integral, enquanto os homens orbitam ao redor delas e “dão tudo" o que elas “precisam”. Devido ao cabresto religioso e o fato de que uma pessoa criada nessa ambiente controlado é vítima da única realidade que conhece, acaba sendo extremamente difícil para que elas abandonem esse estilo de vida – mas acontece.
De acordo com um levantamento feito por Kathryn Joyce, para seu livro Quiverfull: Inside The Christian Patriarchy Moviment, provavelmente 10 mil famílias, principalmente no Centro-Oeste e Sul dos EUA, vivem conforme os princípios da seita, que continua em crescimento acelerado.
Família Duggar. (Fonte: NPR/Reprodução)
Apesar da pouca disseminação, o movimento teve origem em meados da década de 1980 e foi definido como uma "doutrina de cristãos evangélicos fundamentalistas", e não possui uma igreja organizada. Muito embora seja uma forma de cristianismo, também não se denomina como, mas as famílias costumam frequentar cultos evangélicos e protestantes.
A clandestinidade do Quiverfull acontece também dentro dele, com os próprios frequentadores não se referindo como parte do movimento, por isso acaba sendo difícil precisar o número de famílias que o seguem.
(Fonte: FancyCrave.com/Unsplash)
Para Nancy Campbell, líder do movimento Quiverfull e autora do livro Be Fruitful and Multiply, em entrevista à NPR, o útero é uma arma contra o inimigo, por isso as mulheres devem se dedicar totalmente à maternidade.
Visto que o nome do movimento é oriundo do Salmo 127, onde é dito: “Como flechas nas mãos de um guerreiro são os filhos nascidos na juventude. Bem-aventurado o homem cuja aljava (quiver, em inglês) está cheia (full, em inglês) de flechas" –, é interpretado que os filhos são as flechas, por isso é esperado que as famílias procriem cada vez mais, pois eles poderão usar esse "poder" para impor suas crenças a outros países, competindo contra as demais religiões e formando um verdadeiro exército.
Campbell, que já foi chamada de racista, reforça seu preconceito quando diz que acredita que as famílias cristãs precisam existir em maior número possível para evitar serem superadas pelos muçulmanos ou outras etnias e religiões.
(Fonte: Allender Center/Reprodução)
Todo esse dogma, com excesso de pessoas em uma mesma família, se torna um problema financeiro e também de saúde. Uma ex-membro disse à Vice que o número de gestações pelas quais seu corpo foi submetido levou a uma ruptura uterina parcial que quase custou sua vida. No movimento, morrer no parto é visto como um "ato nobre".
Apesar da ideia de que Deus nunca proveria uma família com mais filhos do que o homem poderia suportar, isso não é o que acontece. Uma matéria da BBC revelou que o fardo financeiro de ter até 12 filhos pode ser devastador, e é impossível que eles vivam de maneira meramente confortável, portanto a pobreza e escassez é comum entre as famílias.
Para muitos, a maneira de escapar desse ciclo de restrições e abusos são outros ex-crentes do Quiverfull, por isso pessoas como Garrisson batalham todos os dias para que seu grupo de apoio, No Longer Quivering, possa atingir até mesmo àqueles que vivem nas sombras da reclusão, longe de uma realidade em que há liberdade.