Artes/cultura
10/02/2020 às 14:00•4 min de leitura
Causada pelo bacilo Yersinia pestis, a Peste Negra ou Peste Bubônica foi uma das mais devastadoras pandemias do mundo, responsável por aniquilar de 75 a 200 milhões da população europeia, entre 1347 e 1351. Originada na China ou na Ásia Central, a bactéria estava presente no trajeto que a comercialização da seda fazia, viajando nos intestinos das pulgas que dominavam os ratos e que, por sua vez, infestavam os porões dos navios que atracavam nos portos.
As precárias condições das cidades medievais, com lixos espalhados pelas ruas, fezes e moradias pequenas e sujas, criaram um ambiente propício para a disseminação da peste. Após o primeiro surto iniciado pela presença incontrolável dos roedores transportados pelos mercadores, a doença evoluiu no corpo humano e se tornou pneumônica, se tornando possível a transmissão no contato de pessoa para pessoa através da tosse ou do espirro.
Abatidos por uma febre que atingia 41 °C, as pessoas vomitavam sangue, o corpo se enchia de tumores virulentos do tamanho de maçãs, com manchas negras predominando por toda a extensão da pele, já indicando que a morte era iminente. Desenvolvendo complicações pulmonares graves, cerca de 80% dos afetados morriam entre 2 e 7 dias, aumentando para 90% em casos de comprometimento pulmonar.
300 anos depois, um surto da peste bubônica chegou ao vilarejo de Eyam, que fica a cerca de 56 quilômetros da cidade de Manchester. Na época, o retorno da doença estivera até então restrito ao sul da Inglaterra e por isso causou o desespero nos moradores da vila com a possibilidade de uma destruição total. Então as pessoas tomaram a única e derradeira decisão para que a doença não causasse mais uma destruição em massa.
Fonte: Francis Frith / Reprodução
Foi no final de agosto do verão de 1665 que um comerciante de tecidos de Londres enviou algumas amostras com as tramas repletas de pulgas de ratos infectados para a casa do alfaiate Alexander Hadfield, que morava no vilarejo de Eyam, situado no Peak District National Peak, e que na época havia viajado a trabalho. George Viccars, o assistente do profissional que estava no vilarejo apenas para ajudar a confeccionar as roupas para o festival religioso Wakes Week, abriu o fardo e pendurou os tecidos na frente da lareira da família do alfaiate para eliminar a umidade.
George sofreu durante sete dias com a doença até que acabasse agonizado com a morte. Ele foi enterrado no dia 7 de setembro de 1665 no próprio vilarejo. Logo em seguida, Mary e Edward Cooper, a esposa e o filho de quatro anos de Alexander Hadfield, foram os próximos a sucumbirem à morte em 22 de setembro daquele ano. Peter Hawksworth, o vizinho, morreu um dia depois da família do alfaiate. Mais cinco mortes se sucederam, todas essas de pessoas que eram vizinhos diretos da casa contaminada.
Uma onda de comoção e desespero se espalhou por todo o local. À princípio, os moradores acreditavam que estavam sofrendo a ira de Deus por serem pecadores. Ao longo de duas semanas de surto de puro medo e descontrole, as pessoas mais endinheiradas arrumaram as malas e fugiram do vilarejo, temendo serem atingidas por essa espécie de juízo divino. Os pobres, por outro lado, permaneceram por não terem meios financeiros de irem.
Tendo conhecimento desse êxodo e do que acontecia no vilarejo, a cidade de Sheffield, vizinha a Eyam, ergueu barreiras patrulhadas para impedir a entrada desses moradores possivelmente já infectados. Com isso, os que não enxergavam mais a volta como uma opção, montaram acampamentos nas florestas situadas nas cercanias da cidade ou se refugiaram em cavernas.
Em meados de outubro daquele ano, Eyam já contabilizava 23 vítimas fatais da praga. Em novembro, o número elevou para 29, ultrapassando a média anual de óbitos na vila. E isso apenas piorou. No mês de abril de 1666, 73 vítimas já somavam à conta da peste.
O início do fim de Eyam veio com a chegada do inverno, quando as mortes diminuíram e todos chegaram à conclusão de que finalmente aquele episódio de horror estava terminando. Aos poucos, as pessoas foram se sentindo seguras de abandonarem os seus esconderijos e voltarem para os seus lares no vilarejo.
O recém-chegado reitor William Mompesson, percebendo o que estava acontecendo de fato em Eyam, pediu para que a esposa fosse embora com os dois filhos, mas ela resolveu apenas por enviar as crianças para a casa de um casal de amigos em Yorkshire e ficou ao lado do marido.
Com o percentual de mortes aumentando de novo em junho de 1666, William decidiu organizar uma reunião com todos os habitantes da vila. Ao lado do ex-reitor, Thomas Stanley, os dois homens declararam que aquilo se tratava de uma doença mortal e não de uma vingança divina. Com isso, os dois ainda acordaram a partir daquele momento que os funerais seriam suspensos e os mortos teriam que ser enterrados em suas próprias terras.
A decisão causou um furor entre as pessoas, pois, na época, não ser enterrado num solo sagrado e sob uma cerimônia ecumênica tradicional, significava que as almas dos mortos não poderiam jamais ascender aos Céus. Os que desafiavam a medida protetiva, tentavam correr contra o tempo para enterrá-los antes que entrassem em estado de decomposição, eliminando os esporos letais da praga para a atmosfera.
Além disso, a igreja foi interditada. Não haveriam mais eventos, festivais ou celebrações por Eyam, nada que houvesse aglomeração pública, visto que não sabiam como essa doença se espalhava. Resolveram se colocar em regime de quarentena dentro da própria vila, junto com a peste que os rondava e os matava em silêncio, como uma forma de auto sacrifício para evitar que a epidemia se espalhasse para outros lugares.
Não foi uma decisão fácil se isolar de qualquer contato com o mundo exterior, fosse para ter acesso a comida e outros meios de sobrevivência, quanto com parentes. O que os manteve unidos, porém, foi a convicção de que era responsabilidade de todos eles conter aquele mal para que mais pessoas não acabassem daquele jeito, nem que isso lhes custasse a vida.
Eyam nem de perto era autossuficiente, por isso dependeu inteiramente da caridade de benfeitores externos que os atendia através de bilhetes com os pedidos que os moradores deixavam na fronteira da cidade. O Conde de Devonshire, que morava próximo ao vilarejo, era o responsável por encomendar a entrega de alimentos e remédios para os aldeões em confinamento.
Os entregadores deixavam os suprimentos no limite sul da vila, que era o máximo onde o povo poderia chegar e também o mais distante das casas e, consequentemente, do epicentro da praga. No momento da entrega, os voluntários derramavam vinagre ao redor dos sacos e também lavavam as suas mãos, pois assim eles acreditavam que as sementes da peste seriam eliminadas.
Em seis meses, a morte se alastrou vertiginosamente entre os moradores de Eyam, invadindo casas e infestando a atmosfera com o seu cheiro, numa avalanche obscura, dolorosa e repleta de desesperança. Só entre os meses de junho, julho e agosto, foram registradas 155 vítimas. Tudo isso numa vila de aproximadamente 700 habitantes, o que não era considerado nada para a fúria assassina da peste.
No primeiro dia de novembro de 1666, Abraham Morten, um trabalhador acrícola, deu o seu último suspiro causado pela peste, depois de cerca de 280 aldeões terem impregnado os ares com ganidos de tristeza.
Numa dor incompreensível e repleta de resignação, os moradores de Eyam viram os seus entes queridos e amantes descerem com os órgãos podres para dentro de valas sem nome, vitimados pelo sacrifício de manterem a praga em suas mãos, apesar de consequências como aquela. 365 anos depois, o ato heroico ainda permanece marcado na cultura e na História, muito embora a subida dessa placa de honra tenha sido sob muitas lamentações dos vivos e dos mortos, que decidiram resistir e lutar corpo a corpo com o único destino em comum entre os povos: a morte.