A indústria de roubo de corpos do século XVIII e XIX

06/03/2020 às 14:155 min de leitura

No passado, interferir em um túmulo era considerado apenas uma contravenção e a pessoa era punida através de multa e prisão que durava no máximo dois dias. Não havia execução, tampouco algum tipo de julgamento. Durante o século XVIII e XIX, tendo um início mais abrangente na Europa, o roubo de corpos se tornou uma prática mais do que comum, necessária, e estava diretamente vinculada com os avanços vorazes da medicina.

No Reino Unido, antes da Lei de Anatomia de 1832, a única maneira de se realizar estudos em cadáveres dentro da Lei era esperando que os tribunais enviassem para as escolas de medicina os corpos das pessoas condenadas à execução por crimes considerados graves. Contudo, enquanto no século XVIII milhares de pessoas eram sentenciadas à morte o tempo todo, geralmente por crimes menores, no século seguinte a porcentagem caiu para cerca de 56 pessoas a cada ano. Essa redução foi de encontro com o aumento significante de faculdades de medicina e o estudo avançado da anatomia ao redor de toda a Europa. Com poucos cadáveres e métodos precários de refrigeração, o déficit de corpos para estudo médico acabou prejudicando a sede pelo avanço.

E então o mercado obscuro do roubo de corpos começou, respaldado pelos próprios médicos e professores das instituições de ensino que acreditavam que tudo não passava de um mal necessário e que seria compensado através dos benefícios futuros que o estudo anatômico traria para a sociedade mundial.

Os ressurecionistas

(Fonte: Historic UK/Reprodução)

Enquanto ladrões comuns costumavam violar os túmulos e mausoléus para roubarem joias, dinheiro e outros bens que os parentes costumavam enterrar junto com os seus donos para revenderem no mercado negro, algo mudou quando o próprio cadáver se tornou valioso. Uma indústria praticamente especializada em violar sepulturas nasceu da necessidade do ensino aos alunos do campo médico, dos estudiosos da área e também da incapacidade deles de sujarem as mãos de uma forma tão grotesca e torpe, apesar de tudo.

Os criminosos que eram contratados pelas faculdades, por vezes acabavam se atrapalhando no processo de remoção e transporte dos cadáveres e até sendo pegos pela polícia, o que significava a perda do dinheiro e também do objeto de estudo. A partir dessa demanda exacerbada, uma verdadeira malha de homens começou a se especializar na prática de roubo de corpos e por isso foram intitulados como “ressurecionistas”. O trabalho deles consistia especificamente em resgatar os cadáveres ainda frescos de seus túmulos, geralmente no mesmo dia em que foram enterrados ou no máximo no dia seguinte, pois a procura por esse estado era maior pelos contratantes dos serviços, assim como o valor.

A exumação de um crime                  

(Fonte: Perth/Reprodução)

Era sempre feito durante a noite, geralmente em meio a madrugada, e quase sempre os executores estavam bêbados, tanto para se preservarem do frio quanto para entorpecer a repulsa que o ofício os causava. O inverno rigoroso europeu provocava um aumento no comércio, pois os cadáveres demoravam mais tempo para entrarem em processo de decomposição.

A tarefa dos ressurecionistas começava muito antes da noite cair. Os homens enviavam espiãs para funerais, normalmente nos cemitérios da classe média, para realizar a sondagem das sepulturas e repassar dados que contribuiriam na remoção dos corpos. A maioria dos coveiros eram pagos, assim como os guardas do local que, caso se recusassem, poderiam acabar espancados.

Os homens então entravam munidos de lâmpadas e iam atrás dos túmulos já indicados pelas espiãs. Um dos métodos que os ladrões usavam era cavar – com uma pá de madeira, pois era mais silenciosa – na extremidade da sepultura, onde normalmente a terra era mais fofa. Os criminosos ainda contavam com a sorte de os europeus terem o costume de fazer covas muito rasas, o que diminuía ainda mais o tempo de exumação. No que eles atingiam o caixão, quebravam a tampa, amarravam o cadáver e o içavam para o lado de fora. Os homens deixavam as joias, roupas e qualquer bem que havia sido enterrado junto, pois assim não correriam o risco de serem acusados criminalmente.

O caos na morte

(Fonte: The Pirate Empire/Reprodução)

Junto com a indústria de roubo de corpos, ascendeu o império econômico de proteção às sepulturas para poder lucrar sobre o medo da perda dos entes queridos para abomináveis mesas de laboratórios. As pessoas mais endinheiradas pagavam vigias noturnos particulares para patrulharem os túmulos dos parentes, compravam caixões mais seguros que eram panfletados pelas empresas, erguiam lajes de pedra ou barreiras de metal ao redor das sepulturas, as chamadas de mortsafe. Tudo isso para dificultar o trabalho dos ressurecionistas de plantão. Enquanto isso, para os pobres restava montar guarda durante o enterro e depois que o túmulo tinha sido selado, até que o cadáver atingisse um estado de decomposição que o desvalorizasse no mercado. Alguns até chegaram a inventar armadilhas caseiras, uma vez que não podiam adquirir as que eram vendidas.

Os policiais eram incumbidos de vigiar os cemitérios da cidade, porém eram frequentemente subornados pelas quadrilhas especializadas ou embebedados pelas espiãs que os seduziam. Algumas políticas públicas locais para resolver o problema que crescia cada vez mais, foi espalhar recompensas pela prisão de ladrões de túmulos, visando minimizar a prática, mobilizar a população e também reduzir as reclamações e revolta do povo, que crescia junto com o mercado negro.

A apropriação médica de corpos despertou uma onda de ressentimento popular gigantesca, a ponto de gerar motins e protestos em frente a tribunais e locais onde havia execução de condenados. Tentando acalmar os ânimos e também reverter a situação de roubo de corpos, o governo da Grã-Bretanha aprovou a Lei da Morte de 1752, que tornava os anatomistas executores da pena de morte em pessoas culpadas por assassinatos, tudo para criar uma demanda maior de cadáveres legalizados. Porém, isso ainda se mostrou insuficiente para os médicos. Alguns deles começaram a oferecer dinheiro para funcionários das penitenciárias para que eles estimulassem rebeliões para causar mortes e gerar mais corpos para estudo.

Outro mercado foi incitado pelo ato político e também médico, o do assassinato.

O efeito Burke

(Fonte: WHY/Reprodução)

Quanto mais a atenção do público crescia acerca do roubo de corpos, mais a indústria se moldava para encontrar formas de manter o negócio em pé. A Lei estava do lado dos estudiosos, muito embora a sociedade mundial não estivesse, causando revoltas como a 1788, nos Estados Unidos, em que a população chegou a matar 20 estudantes de medicina. No entanto, eles precisavam de mais material para continuarem seguindo, nem que fosse preciso matar para atingir as expectativas.

Alguns ladrões de corpos que se arriscavam ainda mais, passaram a cometer assassinatos para suprir as necessidades médicas. Wiliam Burke e William Hare encabeçaram a prática e acabaram se tornando os mais notórios. Imigrantes irlandeses que estavam na Escócia desde 1828, eles descobriram que podiam fazer dinheiro de um modo mais expresso do que fazer o repasse de pessoas já enterradas. Os homens contabilizaram 16 assassinatos em um período de apenas 10 meses.

O método que os homens usavam era o sufocamento, pois era um dos poucos tipos de morte que poderia ser intitulada como acidental ou natural. Burke e Hare costumavam apanhar mulheres, pois assim conseguiam atrai-las com o charme que possuíam, embebedá-las e então as asfixiar até que morressem. Os corpos dessas vítimas eram vendidos ao médico anatomista Robert Knox, ou pelo menos a maioria das encomendas foram suas, para que usasse em suas aulas e palestras sobre dissecação.

 

(Fonte: Geri Walton/Reprodução)

Quando a matança para uso médico dos dois assassinos veio à público em meados de 1828, a sociedade da época passou a se posicionar a favor da utilização dos cadáveres para uso médico, temendo pela própria vida ao continuarem inviabilizando os usos. O roubo de seus mortos nunca lhes pareceu tão bom.

Em julgamento, Hare testemunhou contra Burke e escapou da condenação, enquanto o parceiro foi enforcado na manhã do dia 28 de janeiro de 1829 e entregue a um anatomista para dissecação, como uma maneira de provar de seu próprio veneno e também por ser parte da Lei.

Após isso, o Governo não viu outra saída senão encontrar uma maneira de as escolas de medicina obterem uma leva de suprimento de estudo adequado, sem precisar recorrer a práticas tão grotescas. Em 1831, com a apreensão da gangue Burkers de Londres, um grupo de homens que matavam pessoas para fazer a venda dos corpos, o parlamento britânico terminou de formular a Lei da Anatomia de 1832, que entrou em vigor no ano seguinte. A lei visava a autorizar a dissecação de corpos não reclamados após 48 horas e também encerrou a prática de anatomização como parte da sentença de morte por assassinato.

Foi só assim que o comércio de arrancar cadáveres de suas sepulturas decaiu, muito embora a prática fosse levar anos para atingir o fundo de sua própria cova.

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