Ciência
17/03/2020 às 14:00•4 min de leitura
Localizado na rua Firmino Whitaker (antiga Rua Xavantes), no bairro do Brás em São Paulo, o Cine Oberdan foi inaugurado em maio de 1929 e projetado para espalhar a opulência que aquela região da cidade precisava mostrar. Com uma estrutura majestosa e imponente, o prédio foi uma idealização da Sociedade Italiana Leale Oberdan e, posteriormente, foi repassado à Empresa Teatral Paulista.
Nomeado em homenagem ao anarquista italiano Guglielmo Oberdan, cujo busto foi esculpido na fachada lateral do edifício, o local era uma realização como projeto. Não havia nenhum cinema parecido com ele em termos de infraestrutura e tecnologia oferecidas na época. O local começava a impressionar já pela fachada, passando pelo grande hall de entrada em mármore branco e terminava na sala de exibição, a qual sustentava escadarias de pedra polida. O teto era decorado com azulejos portugueses, estátuas decorativas e uma cúpula que se assemelhava muito à do já notório e incomparável Theatro Municipal.
Durante 9 anos, o Cine Oberdan foi um sucesso absoluto e um símbolo de orgulho para a cidade de São Paulo. O que os proprietários não podiam imaginar era que o projeto dos sonhos deles ficaria conhecido devido a uma das piores tragédias da cidade.
Cine Oberdan visto de fora.
A sessão matinê do dia 10 de abril de 1938 começou a partir das 15h. Entre as atrações exibidas (como a série Ameaças da Selva), os filmes eram os de maior destaque e costumavam lotar o espaço, ainda mais nos fins de semana, principalmente com crianças. Com cerca de 1,2 mil ingressos vendidos, o filme exibido naquele dia era Criminosos do Ar, considerado uma das sensações do momento.
Segundo algumas testemunhas iniciais, quando o filme estava próximo do fim, em uma determinada cena em que dois aviões se chocam no ar causando um estrondo de grande magnitude, alguém da plateia teria gritado: “Fogo! Fogo!”. Esse teria sido o catalisador de toda a tragédia. Desesperadas e imaginando que de fato se tratava de um incêndio, em parte pela histeria coletiva que rapidamente tomou conta do local e pela potência dos alto-falantes moderníssimos do cinema, as pessoas se levantaram e dispararam rumo às saídas. Havia apenas duas, pois na época não existia a preocupação de criar escapes de emergência, fora que muitos projetistas e arquitetos encaravam a ideia como uma perda de sofisticação e espaço.
Escadarias do Oberdan repleta de pertences perdidos.
Os pais estavam em pânico com suas crianças e esqueceram qualquer tipo de cordialidade, atropelando pessoas ao sair. Em um ato de "salve-se quem puder!" em meio a grande quantidade de indivíduos que tentavam sair daquela sala ao mesmo tempo e se espremiam por meio de duas passagens, começou a acontecer um massacre.
As crianças não eram capazes de medir esforços com os adultos, por isso acabaram caindo no chão e foram pisoteadas pela multidão frenética com medo de algo que sequer existia. Muitas crianças foram chutadas escada abaixo, com pessoas esmagando-as contra os degraus, não se dando conta do que estavam fazendo. Outras se soltaram das mãos dos pais e estes foram obrigados a assistir aos filhos morrerem embaixo das pisadas alucinadas, sem que pudessem fazer nada para impedir.
Aos poucos, os espectadores foram percebendo que não havia fogo algum, e a polícia e os bombeiros chegaram. Porém, a desgraça já tinha ocorrido.
O pai de uma das vítimas ao encontrar o cadáver do filho
Do lado de fora do majestoso Cine Oberdan, centenas de pessoas se encontravam pela rua, ensanguentadas e machucadas. No interior do prédio, havia cerca de 30 crianças que morreram em meio à loucura geral que se abateu sobre as pessoas. Em meio a sapatos, chapéus, carteiras e casacos, foi encontrado apenas o cadáver de uma mulher adulta no chão, chamada Maria Pereira, cujos braços estavam cobrindo o bebê numa tentativa de evitar que ele fosse pisoteado. A criança conseguiu sobreviver pelo sacrifício da mãe.
Muitas crianças feridas foram encaminhadas para o hospital, mas acabaram falecendo a caminho. Em meio à repercussão da mídia e à comoção nacional do caso, o Cine Oberdan foi interditado para que a perícia fosse realizada. Por meio de uma investigação minuciosa, a polícia conseguiu descobrir o que de fato causou aquela tragédia toda.
Um garoto teria passado muito mal de diarreia e queria ir ao banheiro, porém o lanterninha do cinema não aparecia. Com o filme alcançando seus minutos finais, o menino estava começando a ficar angustiado porque sabia que os banheiros lotariam. Incapaz de esperar sequer mais um segundo, ele se dirigiu ao sanitário mais próximo a tempo de não fazer suas necessidades na roupa. Uma vez lá, ele se deparou com mais um problema: as luzes estavam desligadas.
O banheiro onde o garoto teria ido
O menino teve a ideia de pegar um fósforo e colocar fogo em um punhado de jornais para poder enxergar o que estava fazendo. Ele deixou a porta do banheiro entreaberta para que também pudesse captar um pouco da luz da tela que vinha da sala de exibição. Provavelmente foi neste momento que alguém se deparou com o papel ardendo no escuro e gritou “fogo!” para que todos ouvissem.
A perícia chegou a essa conclusão após encontrar jornais queimados no chão do banheiro, a bermuda perdida do garoto e as fezes espalhadas.
A partir dessa tragédia, leis municipais foram expedidas para que nunca mais fossem trancadas as portas de entrada e saída dos cinemas e as travas nelas fossem colocadas apenas pelo lado de dentro. Também foi pedido que saídas de emergência fossem imediatamente implementadas em qualquer edificação nova que tivesse grande acúmulo de público. Aumentou-se o rigor em relação à iluminação dos corredores e do espaço em contraste com a capacidade máxima do local.
As atividades do Cine Oberdan retornaram logo após modificações em seu funcionamento e na capacidade de público, porém nada jamais conseguiu atenuar o fantasma daquele funesto 10 de abril. O cinema seguiu aberto até encerrar suas atividades no fim da década de 1960.