Artes/cultura
24/03/2021 às 15:00•4 min de leitura
No frio cortante de Bruxelas, na Bélgica de 1942, uma garota de apenas 7 anos chamada Misha se viu sozinha após a invasão alemã dominar o país. Para conseguir sobreviver, ela embarcou em uma jornada em meio ao desespero da Segunda Guerra Mundial para conseguir reencontrar seus pais.
Sozinha, a menina se refugiou nas florestas belgas e acabou sendo “adotada” por lobos – ainda que isso possa parecer absurdo. Dessa relação, nasceu um grande sentimento de amor e proteção entre os animais e ela. Esse é o enredo de Sobrevivendo com os Lobos (Survivre Avec les Loups), um livro de memórias fictícias de Misha Defonseca, lançado em 1997 e adaptado para o cinema em 2007.
Apesar de se tratar de uma ficção, a jornada da pequena Misha foi baseada em histórias como a de Erna Schneider, que escapou de um trem de gado que transportava crianças da Prússia Oriental para a Rússia. Por muito tempo, ela viveu sozinha com outros grupos de crianças em meio à floresta. Assim como milhares de outros pequenos órfãos, ela ficou conhecida como “criança-lobo”.
(Fonte: Scoil Vallajeelt/Reprodução)
Após 1 ano do início da Segunda Guerra Mundial, entre setembro e novembro de 1940, aproximadamente 200 mil crianças foram evacuadas de Berlim para partes de Baviera, Salzburgo, Estíria, Prússia Ocidental, Pomerânia, Silésia, região dos Sudetas, Eslováquia, Prússia Oriental e Saxônia, devido ao aumento dos bombardeios aéreos. Hungria e alguns locais das atuais República Tcheca e Dinamarca, denominados “países seguros”, também receberam civis, contabilizando quase 100 mil realocados.
Com o aumento de ataques aéreos às regiões residenciais onde ficavam os civis ao longo do Reno-Ruhr, em cidades como Essen, Colônia, Baixa Saxônia, Vestfália, Schleswig-Holstein e Dusseldorf, o verão de 1943 presenciou a maior migração para o interior da história, com o deslocamento de milhares de mulheres e crianças. Essas pessoas foram concentradas em campos de evacuação especiais chamados de “Campos KLV”, que tinham até escolas e instalações médicas, reunindo cerca de 2 milhões de crianças em mais de 2 mil campos espalhados pela Bulgária e pela Romênia.
(Fonte: The Daily Archives/Reprodução)
No final de 1944, os civis alemães já se viam presos em um cerco após Erich Koch, líder da Prússia Oriental, proibir que eles evacuassem o território ameaçado pela iminente invasão do Exército Vermelho, à medida que a Alemanha nazista perdia a Segunda Guerra Mundial.
No entanto, em 13 de janeiro de 1945, tornou-se impossível conter as pessoas com o avanço da ofensiva da Prússia Oriental, coordenada pelo soviético Ivan Chernyakhovsky. A fuga foi permitida no último momento, enquanto os frontes alemães ainda lutavam para impedir a dominação da bandeira vermelha. As pessoas escaparam para os novos campos construídos na Boêmia e na Morávia, que se tornaram áreas seguras.
(Fonte: Pinterest/Reprodução)
O bombardeio dos Aliados forçou muitas crianças a serem enviadas para a Turíngia como medida de segurança, mas a maioria delas acabou presa lá quando o exército soviético invadiu. Foi a partir desse momento que muitas começaram a se perder junto aos refugiados massacrados pelos inimigos.
Estima-se que mais de 75 mil crianças alemãs foram destroçadas e mortas pelos bombardeios violentos, entre outras milhares que se viram abandonadas, tornando-se órfãs e fugindo para as florestas para conseguir sobreviver e não serem capturadas pelas tropas dos Aliados e conduzidas para campos de trabalho forçado.
(Fonte: Exulaten/Reprodução)
No final da guerra, aproximadamente 53 mil órfãos viviam em locais inóspitos, na floresta, em campos devastados, buracos no chão, caixas, celeiros, galpões desativados, edifícios danificados por bombas e até em troncos de árvores. Essas “crianças-lobo”, como foram denominadas, também sofreram violência, morreram de fome e foram roubadas. Havia milhares de cartazes de crianças desaparecidas por toda a Alemanha e Áustria, porém não eram suficientes, e poucos ajudaram a promover reencontros, principalmente por causa das expulsões não legisladas e não oficiais de alemães.
O resultado foi muitas crianças enviadas para orfanatos soviéticos, enquanto outras fugiram para algum lugar da Lituânia e para Alemanha dividida. Algumas delas até tiveram sorte de serem apadrinhadas por camponeses e fazendeiros lituanos, que as intitulavam de “pequenos alemães”, dando-lhes comida, roupas e abrigo de graça. A maioria dos sobreviventes, porém, cresceu sem seus pais ou parentes por perto.
(Fonte: Pinterest/Reprodução)
As crianças mais velhas que conseguiram se manter junto a seus irmãos mais novos eram as que comandavam os grupos e faziam viagens de ida e volta ao longo dos trilhos de ferrovias ou entre a floresta para conseguir comida para quem estava doente. Em meados de 1946, agricultores lituanos que vendiam seus produtos nos distritos da Prússia Oriental procuravam os jovens e as crianças que viajavam até a região oriental do Báltico para oferecer seu trabalho para eles em troca de mantimentos. Estima-se que mais de 45 mil crianças alemães e jovens permaneceram na Lituânia em 1948.
Apesar da ajuda de pessoas que foram como “anjos da guarda”, os pequenos sofreram danos irreversíveis com a vida selvagem, a falta de escolarização, o abandono, as doenças, os ferimentos de guerra e a desnutrição. Muitas morreram de fome, principalmente bebês recém-nascidos que eram descartados em panos em becos e calçadas de Berlim, porque os pais não podiam sustentá-los ou porque foram encontrados ao lado de cadáveres.
(Fonte: Revisionist/Reprodução)
Os Estados Unidos e o Reino Unido proibiram toda e qualquer ajuda humanitária privada ou da igreja para os 85 milhões de civis alemães que viviam no pânico da guerra, causando a morte intencional de milhares deles. Por 1 ano foi proibida ajuda internacional de instituições e voluntários de caridade à Alemanha após o fim da guerra, e depois restringida a ponto de causar uma crise de fome generalizada. Quando finalmente foi permitida, corpos já eram queimados nas ruas porque se amontoavam na sarjeta e acumulavam doenças, sendo a maioria de crianças. De qualquer forma, a ração oferecida pelos Aliados era de aproximadamente 400 calorias diárias. Por mais de 2 anos, o número nunca ultrapassou 1.550 calorias por dia, e as pessoas morreram de desnutrição.
Entre mulheres e crianças, o número de alemães assassinados pelos Aliados foi de cerca de 9 milhões. O orgulho alemão e a tendência de desconsiderar a própria história em aspectos que os humilhassem ou pudessem vitimizá-los perante o mundo fez a Alemanha esconder e negligenciar as “crianças-lobo” no discurso do pós-guerra, acabando por deixar que fossem inseridas apenas na narrativa histórica da Europa moderna.