Ciência
25/03/2021 às 15:00•4 min de leitura
ATENÇÃO: esse texto pode trazer conteúdos sensíveis por abordar um caso real.
Em outubro de 2017, a cantora e atriz Alyssa Milano começou o movimento #MeToo no Twitter pedindo para que mulheres que já sofreram assédio no trabalho ou foram vítimas de qualquer outro tipo de violência sexual, respondessem a sua pesquisa dizendo “Eu Também”. O resultado foi uma "onda" de mulheres que se encorajaram para sair das sombras e unir esforços com as demais, de famosas a anônimas, gerando uma campanha que expôs até mesmo assediadores que são figuras notórias de Hollywood.
Em 2016, um relatório chamado EEOC Select Task Force On The Study Of Harassment In The Workplace feito pela Comissão de Oportunidades Iguais de Emprego dos Estados Unidos, apontou que 60% das mulheres relataram “atenção sexual indesejada, coerção sexual, conduta sexual grosseira ou comentários machistas” em seu ambiente de trabalho. Estimaram que 90% das funcionárias que sofreram assédio nunca registraram uma reclamação formal por vergonha e medo de serem desacreditadas ou perderem oportunidades de trabalho.
Em fevereiro de 2018, a pesquisa do jornal USA Today junto com o The Creative Coalition, Women in Film and Television e o NSVRC, contabilizou que 94% das mulheres com carreiras em Hollywood já sofreram alguma forma de assédio ou agressão sexual, geralmente por um indivíduo mais velho e em uma posição de poder. Para piorar, cerca de 21% delas relataram terem sido forçadas a fazerem algo sexual pelo menos uma vez.
(Fonte: The New York Times/Reprodução)
Mildred Mitchell fez o possível e o impossível para que sua filha, Patricia Douglas, pudesse se tornar uma estrela de Hollywood. A garota nasceu em 27 de março de 1917, na cidade do Kansas, no Missouri (EUA), e se mudou com a mãe para Los Angeles para poder dar início a sua carreira cinematográfica. Além de Mitchell sonhar em ver a filha nas telas, ela também namorava a ideia de conseguir se tornar uma influente costureira dos famosos.
Enquanto Mitchell começou costurando vestidos para garotas de programa de luxo, ela permitiu que Patricia abandonasse a escola aos 14 anos para poder se dedicar fazendo figuração e algumas pontas como bailarina em filmes, visto que esse era seu maior talento. Nesse ínterim, Mitchell passou a viver o próprio sonho e negligenciou a filha adolescente.
Patricia era considerada incomum para sua idade, sobretudo por se recusar a beber, fumar ou flertar com qualquer um. Ela queria viver seu sonho, por isso se tornou uma espécie de "mascote" dos atores famosos durante as festas da produção e pausas nas gravações. Ela costumava dividir uma Coca-Cola com Dick Powell, jantar com Jimmy Durante, servir de conselheira de George Raft e dançar com Larry Fine.
(Fonte: Pinterest/Reprodução)
Na tarde de domingo de 2 de maio de 1937, Patricia recebeu do assistente de elenco, Vincent Conniff, uma chamada para trabalhar. Na época, ela tinha 20 anos e concordou em ir, apesar de ser sustentada pela mãe e não precisar gerar renda. Às 16h, ela se reuniu com mais 120 jovens dançarinas que atenderam ao chamado no Hal Roach Studios, no quarteirão da MGM. Elas foram vestidas com chapéus de caubói, jaquetas de bolero com cinto, saias curtas e botas pretas. Em nenhum momento foi dito para qual gravação seria, então elas simplesmente obedeceram.
Depois de se maquiarem, as jovens foram levadas de ônibus para o Rancho Roachero, um estúdio remoto longe do centro da cidade e no meio do nada. Elas foram instruídas a se sentarem às mesas de um grande salão de festas e esperar. Se Patricia fosse mais experiente e perspicaz, teria notado que, apesar de um bar e uma orquestra, o local não possuía equipe, luzes ou câmeras.
(Fonte: Vanity Fair/Reprodução)
Às 18h, vários empresários, atores e mais de 300 homens da MGM invadiram o local. A música começou a tocar e os homens a se apossar das jovens, tocando-as, flertando e agindo de maneira sexual. “Eles nunca mencionaram que era uma festa. Eu nunca teria ido”, confessou Patricia à Vanity Fair. Sem meio de comunicação e transporte, as mulheres foram largadas lá à própria sorte.
Foi depois que foram forçadas a dançar, que o empresário solteirão e católico, David Ross, então com 36, de um escritório de vendas de Chicago, passou a perseguir Patricia Douglas. Ele pediu que a jovem dançasse com ele, e assim ela o fez, evitando ao máximo criar confusão, apesar de o homem ser um “canalha irritante e repulsivo”. Quando Ross começou a tocar os genitais dela, Patricia fugiu para o banheiro, mas foi contida por ele e um outro homem no meio da pista de dança.
(Fonte: The Dissolve/Reprodução)
A jovem foi forçada a tomar uma dose de uísque puro, depois ela fugiu para fora do salão para se afastar dos homens e poder respirar um pouco. Patricia foi surpreenda por Ross, que tapou sua boca e sussurrou: “Fica quietinha ou você nunca mais vai respirar”. O empresário a arrastou para seu carro no estacionamento e a jogou no banco de trás. Ele disse que a "destruiria" com seu pênis, e quando ela começou a desmaiar, o homem deu tapas na cara dela e berrou: “Coopere! Eu quero você acordada!”. Então Patricia Douglas foi estuprada.
Ela foi encontrada às 23h30, depois que o manobrista ouviu seus gritos de socorro. Patricia foi internada no Culver City Community Hospital, antes mesmo de ser examinada, pois o local possuía convênio com a MGM. Apesar das reclamações de dor e do sangramento vaginal, o médico que a examinou disse que ela não tinha nada, e pediu para que enfermeiros dessem uma ducha completa nela, lavando qualquer evidência de seu corpo.
Patricia Douglas se tornou a primeira mulher a denunciar um abuso sexual na mídia, e provavelmente a primeira a não ser ouvida. O poder da MGM abafou cada depoimento da jovem, e quando o caso ganhou o tribunal e explodiu inevitavelmente, eles deram início a uma campanha de difamação de sua reputação. Ela foi descrita como imoral, promíscua, prostituta de famosos, bêbada e tudo o mais que pudesse "justificar" ela ter sido violentada.
(Fonte: Yeah History/Reprodução)
Sob manchetes de “o julgamento da década”, Patrícia Douglas deixou o tribunal com o veredito de “inconclusivo” pesando suas costas, e David Ross saindo ileso das acusações. Ela entrou com um processo contra a MGM, mas não chegou a lugar algum.
Em entrevista à Vanity Fair em 2003 para David Stenn, diretor do seu documentário Girl 27, Patrícia Douglas, então com 86 anos, declarou: “David Ross arruinou minha vida. Tirou toda a minha confiança. Nunca me apaixonei. Fui um zumbi ambulante que passou pela vida”. Ross, de fato, conseguiu destruí-la.