Ciência
20/10/2023 às 14:00•3 min de leitura
Em 11 de março de 2020, Tedros Adhanom, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), declarou o mundo em estado de pandemia devido à contaminação pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2). Em três anos, o flagelo da doença causou a morte de cerca de 15 milhões de pessoas pelo mundo, como divulgado no último balanço feito pelo órgão, até que o status de pandemia passasse após uma campanha massiva de imunização.
Entre todos os aspectos ruins, a pandemia também promoveu avanços na ciência e saúde, acelerou a adoção à jornada de trabalho flexível e à educação online, conscientizou sobre saúde pública e sua importância, aumentou a digitalização da economia, trouxe inovações tecnológicas, e estabeleceu novos protocolos de saúde e higiene.
(Fonte: GettyImages/Reprodução)
Só quem nem tudo mudou. Em 2020, um relatório divulgado pela Plataforma Intergovernamental de Políticas Científicas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) havia associado as atitudes que causam mudanças climáticas à propensão ao surgimento de novas doenças virais. Um artigo publicado na revista Estudos Avançados ressaltou a necessidade de mudanças profundas em relação ao desenvolvimento global sustentável e a maneira como o planeta lida com seus recursos naturais, pois os vírus são um componente da biodiversidade e se proliferam mais em países onde há desequilíbrios socioeconômicos e alteração do meio ambiente.
Se os países adotassem um posicionamento adequado face ao aquecimento global e à aceleração constante dos meios de produção, é possível que freasse novas pandemias no panorama da crise de biodiversidade. Afinal, os especialistas já deixaram claro que a próxima pandemia deve acontecer no setor da agricultura.
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Desde a segunda metade do século XX, quando aconteceram os surtos de doenças mais relevantes dos tempos modernos, já ficou claro que precisamos repensar nossas relações com os animais, como as epidemias estão relacionadas a sua criação e a indústria alimentícia. De 1970 até então, surgiram cerca de 500 novas doenças zoonóticas, como a gripe aviária, ebola, Nipah vírus, HIV, zika e até mesmo a covid-19.
Os humanos nunca estiveram tão próximo dos patógenos de outras espécies, e isso acontece porque também nunca criamos tantos animais de maneira tão intensiva. Em 2018, o centro de estudos Faunalytcs estimou que mais de 70 bilhões de animais terrestres são abatidos para a indústria da carne. A organização Global Agriculture aponta que 60% das terras agrícolas do mundo são utilizadas para a produção de carne, mesmo representando menos de 2% das calorias consumidas em todo o mundo.
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Para manter o nível de produção, a indústria precisa confinar milhares de animais, normalmente em condições de adversas, em locais superlotados e totalmente não naturais. Com isso, as fazendas industriais se tornaram verdadeiras fábricas de criação de doenças, incubando e aprimorando patógenos e permitindo que se cruzem e se proliferem nos bandos, alcançando os seres humanos em um estado hipervirulento. Assim nascem surtos que evoluem para epidemias e podem alcançar o status de pandemia.
Esse comportamento da indústria que visa o alto rendimento é igual em toda a extensão da cadeia de produção alimentícia. A diferença é que na indústria pecuária enxergamos os resultados disso por meio das consequências desastrosas em escala global, enquanto a agricultura sofre baixas preocupantes desde o século passado.
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Um relatório de 2019, emitido pela Plataforma Intergovernamental de Políticas Científicas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, diz que 40% da terra do planeta é coberta por fazendas. Atualmente, quase 50% dos sistemas são compostos por apenas quatro culturas: trigo, milho, arroz e soja. Já vimos que doenças são comuns, não é para menos que, globalmente, US$ 30 bilhões em alimentos são perdidos para patógenos todos os anos.
Miguel Altieri, professor emérito da Universidade da Califórnia, em Berkeley, respondeu ao The Grist que temos todas as condições para que ocorra uma pandemia nos sistemas agrícolas, causando fome em escala global e dificuldades econômicas catastróficas. E as mudanças climáticas aumentam esse perigo porque abalam a distribuição de patógenos e os colocam em contato com novas espécies de plantas, potencialmente piorando muito as doenças nas plantações.
Foi assim no verão de 1970 nos Estados Unidos, quando o fungo Bipolaris maydis causou uma doença chamada praga da folha do milho do sul, que faz com que os caules murchem e morram. O flagelo da doença devastou da região Sul ao Centro-Oeste americano, reduzindo a safra de milho em cerca de 15%, gerando um prejuízo de US$ 1 bilhão.
O episódio fez a população norte-americana perder mais calorias em sua alimentação do que os irlandeses durante a Grande Fome de 1840, quando os campos de batatas foram dizimados por doenças.
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Mas esse fungo só afetou as safras de milho dessa maneira porque a industrialização do sistema alimentar, iniciada na virada do século XX, fez os cientistas da década de 1930 desenvolverem uma variedade de milho com uma uniformidade genética alterada para gerar mais rendimentos. Essa variedade específica, conhecida como cms-T, constituiu a base genética para 90% do milho cultivado em todos os EUA, e se mostrou altamente suscetível à praga das folhas do milho. Sendo assim, quando aconteceu uma primavera excepcionalmente quente e úmida que favorecia o fungo, ele tinha uma quantidade imensa de produto para queimar.
“Nunca mais uma grande espécie cultivada deve ser moldada em tal uniformidade que seja tão universalmente vulnerável ao ataque de um patógeno”, escreveu o patologista vegetal Arnold Jonh Ullstrup, em um artigo sobre o assunto, publicado em 1972.
Apesar do estrago que essa uniformidade genética pode causar, hoje é uma das principais características da maioria dos sistemas agrícolas de grande escala. Conforme a máquina de produção acelera, mais alterações são feitas e mais suscetíveis a surtos de doenças as plantas ficam.
Enquanto os sistemas forem baseados na monocultura, que só atrai prejuízos, e não for feita a incorporação da biodiversidade na agricultura em grande escala –, a crise tende a ficar cada vez maior, pois, como Altieri mesmo pontua: “criamos amplificação e não diluição”.